“O Mal no Pensamento Moderno (introdução)” – Susan NEIMAN

Os aspectos das coisas que são mais importantes para nós ficam escondidos devido a sua simplicidade e familiaridade. (É impossível perceber qualquer coisa — porque ela está sempre diante dos olhos.) As verdadeiras bases de sua investigação não surpreendem em nada. — E isso significa: deixamos de ser afetados por aquilo que, uma vez visto, é incrivelmente impactante e poderoso.

— Wittgenstein, Investigações filosóficas, #129

O século XVIII costumava usar a palavra Lisboa tanto quanto hoje usamos a palavra Auschwitz. Quanto peso uma referência bruta é capaz de carregar? Não é preciso mais do que o nome de um lugar para significar: o colapso da confiança mais básica no mundo, dos fundamentos que possibilitam a civilização. Sabendo disso, os leitores modernos podem sentir-se melancólicos: feliz a época que um terremoto pode prejudicar tanto. O terremoto de 1755 que destruiu a cidade de Lisboa e vários milhares de seus habitantes estremeceu o Iluminismo até a Prússia oriental, onde um desconhecido estudioso de importância menor chamado Immanuel Kant escreveu três ensaios sobre a natureza dos terremotos para o jornal de Königsberg. Ele não estava sozinho. A reação ao terremoto foi tão ampla quanto veloz. Voltaire e Rousseau nela encontraram mais uma razão para brigar, academias Europa afora dedicaram-lhe concursos de ensaios premiados, e, segundo várias fontes, Goethe, então com seis anos de idade, foi levado pela primeira vez à dúvida e à consciência. O terremoto afetou as melhores mentes da Europa, mas não se limitou a elas. As reações populares foram de sermões a esboços de testemunhas a poesia de péssima qualidade. Sua quantidade foi tão grande, que chegou a causar suspiros na imprensa contemporânea e comentários sardônicos de Frederico, o Grande, que considerou exagerado o cancelamento dos preparativos para o carnaval meses depois do desastre.

Auschwitz, por sua vez, evocou uma relativa reticência. Os filósofos ficaram chocados, e, segundo a opinião muito famosa expressada por Adorno, o silêncio é a única reação civilizada. Em 1945, Arendt escreveu que o problema do mal seria o problema fundamental da vida intelectual européia do pós-guerra, mas mesmo essa sua previsão não estava exatamente correta. Nenhuma obra filosófica importante, com exceção da sua própria, foi editada em inglês sobre o assunto, e os textos alemães e franceses eram notavelmente dúbios. Relatos históricos e depoimentos de testemunhas oculares foram publicados em um volume jamais visto, mas a reflexão conceitual demorou a chegar.

Não é possível que os filósofos tenham deixado de perceber um acontecimento dessa magnitude. Pelo contrário, uma das razões dadas para a ausência de reflexão filosófica é a magnitude da empreitada. O que aconteceu nos campos da morte nazistas foi tão absolutamente mau, que, diferente de qualquer outro acontecimento na história mundial, desafia a capacidade humana de compreensão. Mas a questão da singularidade e da magnitude de Auschwitz é uma questão filosófica em si; pensar sobre isso poderia levar-nos a Kant e Hegel, a Dostoievski e Jó. Não é preciso solucionar questões sobre a relação de Auschwitz com outros crimes e sofrimentos para considerá-lo paradigmático do tipo de mal que a filosofia contemporânea raramente examina. As diferenças das respostas intelectuais ao terremoto de Lisboa e ao assassinato em massa de Auschwitz são diferenças não apenas na natureza dos acontecimentos, mas também em nossas constelações intelectuais. O que se considera um problema filosófico e o que se considera uma relação filosófica, o que é urgente e o que é acadêmico, o que é questão de memória e o que é questão de significado — tudo isso está aberto a mudanças.

Este livro acompanha mudanças que ocorreram em nossa compreensão do indivíduo e de seu lugar no mundo do início do Iluminismo ao final do século XX. Tomar as reações intelectuais a Lisboa e Auschwitz como pólos centrais de investigação é uma maneira de localizar o começo e o fim do moderno. Focalizar pontos de dúvida e de crise nos permite examinar os pressupostos que nos servem de guia, examinando o que os desafia nos pontos em que eles se rompem: o que ameaça nossa noção do sentido do mundo? Esse foco também subjaz uma das alegações centrais deste livro: o problema do mal é a força condutora do pensamento moderno. A maioria das versões contemporâneas da história da filosofia não considerará essa alegação propriamente falsa, mas sim incompreensível. Pois o mal é considerado um problema teológico. Classicamente, ele é formulado sob a forma da seguinte pergunta: como poderia um Deus bom criar um mundo cheio de sofrimento inocente? Tais questões estão fora da alçada da filosofia desde que Immanuel Kant argumentou que Deus, assim como muitos outros temas da metafísica clássica, excede os limites do conhecimento humano. Se alguma coisa pode parecer unir filósofos dos dois lados do Atlântico, é a convicção de que o trabalho de Kant proscreve não apenas futuras referências filosóficas a Deus, mas a maioria dos outros tipos de fundamento também. Nessa perspectiva, comparar Lisboa a Auschwitz não passa de um equívoco. O equívoco parece consistir em aceitar o uso da palavra mal no século XVIII para se referir tanto a atos de crueldade humana como a casos de sofrimento humano. Esse erro pode ser natural para um grupo de teístas disposto a atribuir a Deus a responsabilidade por ambos, mas não deveria confundir o restante de nós. Sob esse aspecto, Lisboa e Auschwitz são dois tipos de acontecimento completamente diferentes. Lisboa indica o tipo de coisa que as companhias de seguro chamam de desastres naturais, para removê-los da esfera de ação humana. Assim, os seres humanos são liberados da responsabilidade não apenas de os causar ou compensar, mas até mesmo de pensar a respeito, exceto em termos pragmáticos e tecnológicos. Terremotos e vulcões, fomes e inundações habitam as fronteiras do significado humano. Queremos entender a respeito apenas o suficiente para nos ajudar a controlá-los. Só os teístas tradicionais — ou seja, pré-modernos — buscarão significado neles. Auschwitz, por sua vez, representa tudo que queremos dizer hoje em dia quando usamos a palavra mal: atos absolutamente daninhos que não deixam espaço para justificativa ou explicação.

Inicialmente, então, dois acontecimentos não poderiam parecer mais diferentes. Se existe um problema do mal gerado por Lisboa, ele só pode ocorrer para os ortodoxos: como pode Deus permitir uma ordem natural que cause sofrimento inocente? A questão do mal colocada por Auschwitz parece inteiramente distinta: como podem os seres humanos comportar-se de maneiras que violam inteiramente tanto as normas da sensatez quanto as da razão? É exatamente essa noção de que os problemas são fundamentalmente diferentes que marca a consciência moderna. A distinção nítida entre mal natural e mal moral, que hoje parece auto-evidente, nasceu em tomo do terremoto de Lisboa e foi alimentada por Rousseau. Retraçar a história dessa distinção e as maneiras como os problemas se recusaram a permanecer separados é um dos objetivos deste livro.

Uma razão central para localizar o início do moderno em Lisboa é justamente sua tentativa de dividir claramente a responsabilidade. Um exame atento dessa tentativa revelará toda sua ironia. Embora os philosophes sempre tenham acusado Rousseau de nostalgia, a discussão de Voltaire sobre o terremoto deixava ainda mais coisas nas mãos de Deus do que a de Rousseau. E, quando Rousseau inventou as ciências modernas da história e da psicologia para lidar com questões que o terremoto trazia à tona, foi em defesa da ordem de Deus. Sem levar em conta as ironias, a consciência que emergiu depois de Lisboa foi uma tentativa de maturidade. Se o Iluminismo é a coragem de pensar por si mesmo, é também a coragem de assumir responsabilidade pelo mundo no qual se é lançado. Separar radicalmente o que épocas anteriores chamavam de males naturais dos males morais fazia, portanto, parte do significado da modernidade. Se podemos dizer que Auschwitz marcou seu fim, é pela maneira como ele marca nosso terror. As concepções modernas do mal foram desenvolvidas em uma tentativa de parar de culpar Deus pelo estado do mundo e de assumirmos sozinhos a responsabilidade por ele. Quanto mais a responsabilidade pelo mal era deixada para o ser humano, menos digna a espécie parecia para assumi-lo. Ficamos sem direção. Voltar à tutela intelectual não é uma alternativa para muitos, mas agora as esperanças de crescer parecem nulas.

A história da filosofia, assim como a das nações ou dos indivíduos, deveria ensinar-nos a não tomar como dada a interseção de pressupostos quando nos encontrarmos em momentos específicos no tempo. Aprender isso é parte crucial do autoconhecimento, que sempre foi o objetivo da filosofia. Mas a história da filosofia só atinge esse conhecimento quando é suficientemente histórica. O mais freqüente é a história da filosofia ser abordada como se nossas constelações e categorias fossem manifestas. Em termos mais genéricos, provavelmente concordamos com a visão de Comte da história intelectual como uma progressão da era teológica para a era metafísica e para a era científica. Segundo essa visão, os pensadores cujo mundo foi estilhaçado pelo terremoto de Lisboa confirmariam todas as convicções sobre a ingenuidade do Iluminismo. No melhor dos casos, sua reação parece estranha, um sinal de imaturidade intelectual condizente com uma época que se via na fronteira entre teologia e metafísica. Quando se acredita que o mundo é regulado por uma figura paterna boa e poderosa, é natural esperar que sua ordem seja inteiramente justa. Jogue fora essa crença, e todas as expectativas que sobrarem são resíduos não resolvidos de fantasias infantis. Assim, as ondas de choque intelectual geradas por Lisboa, quando percebidas, são vistas como as dores do parto de uma época mais triste, porém mais sábia, que aprendeu a viver sozinha.

Argumentarei que essa visão é em si uma visão histórica, pois não há nada mais fácil do que colocar o problema do mal em termos não teístas. Pode-se colocá-lo, por exemplo, como uma discussão com Hegel: o real não apenas não é idêntico ao racional; eles nem sequer estão relacionados. Não é preciso nenhuma teoria para fazer essa observação. Qualquer observação do mundo que dure mais de dois minutos deveria bastar. Sempre que emitimos o julgamento isso não deveria ter acontecido, estamos enveredando por um caminho que conduz diretamente ao problema do mal. Observem que isso é tão pouco um problema moral, estritamente falando, quanto um problema teológico. Pode-se chamá-lo de ponto em que a ética e a metafísica, a epistemologia e a estética se encontram, colidem e jogam as mãos para os céus. Em jogo estão questões sobre como deve ser a estrutura do mundo para podermos pensar e agir dentro dele. Essas questões logo se tornarão históricas. Pois o que mais exige explicação não é como os julgamentos morais se justificam, mas porque aqueles que são tão claramente justificados foram descartados no passado. Quando se começa a buscar explicação, pode-se terminar em qualquer lugar, do mito, como a Queda, à metafísica, como a Fenomenologia, de Hegel. O importante é que o lugar por onde se começa é perfeitamente comum.

Acredito que esse seja o lugar em que a filosofia começa e em que ela ameaça parar. Pois ela envolve questões mais naturais, urgentes e penetrantes do que os dilemas epistemológicos céticos que convencionalmente se alega conduzirem a filosofia moderna. É possível começar a se preocupar com a diferença entre aparência e realidade porque você percebe que um graveto parece refratado em uma poça d’água ou porque um sonho é tão vívido, que você quer agarrar um de seus objetos durante um ou dois instantes de semiconsciência sonolenta. Mas você acorda na cama, bate no próprio rosto se necessário, tira o graveto da água se estiver realmente em dúvida. Se o problema do mal fosse fácil de dissipar, o esforço hercúleo despendido em centenas de anos de filosofia precisaria ser explicado.

O retrato de uma filosofia moderna centrada na epistemologia e impelida pelo desejo de fundamentar nossas representações é tão tenaz, que alguns filósofos estão preparados para ser fortes e declarar que o esforço é simplesmente vão. Rorty, por exemplo, acha mais fácil rejeitar a filosofia moderna como um todo do que rejeitar os relatos padronizados de sua história. Sua narrativa é mais polêmica do que a média, mas é uma versão polêmica da história contada na maioria dos departamentos de filosofia na segunda metade do século XX. Trata-se de uma história de interesse tortuosamente decrescente. A filosofia, assim como algumas pessoas, estava preparada para aceitar o tédio em troca da certeza à medida que entrava na meia-idade. O que começou como metafísica — a descrição das estruturas básicas da realidade — terminou como epistemologia: a tentativa de identificar, quando não de fundamentar, as bases de nosso conhecimento.

Por simples motivos literários, a narrativa é defeituosa, pois lhe falta a característica central de qualquer movimento dramático: um motivo convincente. A não ser pelo desejo anacrônico de se distinguir dos cientistas naturais, trata-se de uma narrativa de filósofos que agem sem intenção. O fundamento das investigações metafísicas anteriores é quase tão opaco quanto os motivos de sua sucessora. Em ambos os casos, a simples curiosidade dos grandes pensadores esgotou-se investigando questões muito gerais sobre a maneira como as coisas são. Não há nenhuma boa razão para a história da filosofia ter consistido nessa história: como o próprio Descartes sabia, ninguém exceto os loucos realmente chega a pensar que todas as nossas representações podem ser sonhos. Ao longo da Crítica da razão pura, Kant escreveu que alguma coisa precisa explicar o esforço incansável que os filósofos dedicam a um assunto que não traz resultados. Ele pensava que os esforços não podiam ser guiados apenas por pura especulação. São penosos e frustrantes demais para serem movidos por finalidades e problemas que não sejam urgentes.

A conclusão de Kant de que os esforços especulativos são movidos por finalidades práticas não deve ser lida de forma limitada. Pois a última coisa que quero argumentar é que, além da epistemologia, a história da filosofia também estava preocupada com a ética. Estava, é claro, como mostra bem o trabalho contemporâneo sobre história da ética. Mas o problema do mal mostra a inutilidade das tentativas do século XX de dividir a filosofia em áreas que podem ou não estar relacionadas. Para ver isso, não é preciso considerar autores explicitamente holísticos como Spinoza ou Hegel. Até o mais cético dos empiricistas deveria parar e pensar. Que milagres Hume queria que questionássemos? Que costumes queria que mantivéssemos? Ele está mais preocupado com a simpatia ou com a substância? — Anna Karenina é mais sobre amor ou sobre justiça? — A filosofia do século XX não está sozinha em sua capacidade de confundir quebra-cabeças com problemas. Até Sócrates fazia isso às vezes; é uma habilidade que talvez faça parte do impulso de questionar opiniões que dá origem à filosofia. A filosofia medieval revelava como as questões não apenas de vida e morte, mas de vida e morte eterna, podem transformar-se em dilemas sobre substância. Os perigos da sofística e da escolástica estão presentes na possibilidade da própria filosofia. O que é novo não são esses perigos, mas uma fragmentação do sujeito que os filósofos de Platão a Nietzsche não teriam conhecido. Essa mesma fragmentação pode impedir-nos de ver o problema do mal como ele é. O fato de o mundo não conter nem justiça, nem significado ameaça nossa capacidade tanto de agir no mundo quanto de entendê-lo. A exigência de que o mundo seja inteligível é uma exigência da razão prática e teórica, o fundamento do pensamento que se espera que a filosofia forneça. A questão de saber se isso é um problema ético ou metafísico é ao mesmo tempo pouco importante e impossível de solucionar, pois em alguns momentos é difícil vê-la sequer como um problema filosófico. Afirmada com o grau certo de generalidade, ela não passa de uma descrição infeliz: este é o nosso mundo. Se isso não é sequer uma pergunta, não é de espantar que a filosofia tenha sido incapaz de lhe dar uma resposta. Contudo, durante a maior parte de sua história, a filosofia foi levada a tentar fazê-lo, e suas tentativas repetidas de formular o problema do mal são tão importantes quanto suas tentativas de reagir a ele.

Deixem-me resumir as alegações que defenderei.

  1. A filosofia dos séculos XVIII e XIX foi guiada pelo problema do mal. Como a maioria das afirmações curtas, essa é simples demais. Mesmo assim, pretendo mostrar que, como princípio organizador para entender a história da filosofia, o problema do mal é melhor do que outras alternativas. É mais inclusivo, abarcando um número muito maior de textos; é mais fiel às intenções explícitas de seus autores e é mais interessante. Interesse aqui não é uma categoria meramente estética, por mais importante que isso seja, mas também uma categoria explanatória, que responde à pergunta de Kant: o que leva a razão pura a realizar esforços que parecem não ter fim nem resultado?
  2. O problema do mal pode ser expresso em termos teológicos ou seculares, mas ele é fundamentalmente um problema sobre a inteligibilidade do mundo como um todo. Assim, não pertence nem à ética, nem à metafísica, mas forma um elo entre as duas.
  3. A própria distinção entre males naturais e morais é uma distinção histórica desenvolvida durante o debate.
  4. Dois tipos de ponto de vista podem ser identificados desde o início do Iluminismo até os dias de hoje, independentemente do tipo de mal em questão, e ambos são guiados mais pela ética do que por preocupações epistemológicas. Um deles, de Rousseau a Arendt, insiste em que a moralidade exige que tornemos o mal inteligível. O outro, de Voltaire a Jean Améry, insiste em que a moralidade exige que não o façamos.

Minha simpatia pessoal tende para a primeira linha de pensamento, embora reconheça a força da última. Isso me permite, espero, responder à objeção mais perturbadora de todas: o problema do mal no século XVIII era tão diferente do nosso, que comparar os dois envolve não apenas confusão conceitual, mas também moral. Comparar Lisboa a Auschwitz pode parecer não equivocado, mas sim monstruoso, pois corre-se o risco quer de ver o segundo como um desastre mais ou menos natural, desculpando assim os arquitetos, quer de comparar o Criador a criminosos da pior espécie. É difícil dizer o que é pior: contemplação da redenção do comandante de Auschwitz ou violação de imagens de Deus, que até os ateus desejam conservar. Por essa razão, com exceção de observações isoladas, deixou-se que os dois acontecimentos passassem a simbolizar a destruição da visão de mundo de suas épocas, e a questão de como passamos de um para o outro não foi abordada. Embora pareça certo conservar algum incômodo quanto a essa compreensão, acredito que ele dará forma à investigação mais do que a prejudicará.

Entre as muitas coisas que este livro não oferecerá está uma definição do mal ou um critério para distinguir ações más de ações que são simplesmente muito ruins. Isso pode ser tarefa para um livro sobre ética, mas o problema do mal diz respeito a algo diferente. Para descrever esse problema, pode-se perguntar: qual a diferença entre qualificar uma ação de má e outra de crime contra a humanidade? Elas podem muitas vezes ser intercambiáveis. Mas um crime é algo para o qual temos procedimentos — pelo menos para punir, senão para prevenir. Dizer isso é dizer que um crime pode ser ordenado, encaixado de alguma maneira no resto de nossa experiência. Chamar uma ação de má é sugerir que tal coisa não pode ser feita — e que, portanto, essa ação ameaça a confiança no mundo, de que precisamos para nos orientar nele. Argumentarei que males não podem ser comparados, mas devem ser distinguidos. O que aconteceu em 11 de setembro foi um tipo de mal; o que aconteceu em Auschwitz, outro. Esclarecer as diferenças não porá fim ao mal, mas pode ajudar a evitar nossas piores reações a ele.

Lamentar a perda de padrões absolutos para julgar o certo e o errado deveria ser supérfluo um século depois de Nietzsche, mas alguém parece fazê-lo a cada dia. Praticamente todos aqueles que ministraram algum curso de ciências humanas conheceram alunos que descobriram que palavras como bem e mal são ultrapassadas, já que são usadas por culturas diferentes de formas diferentes. O que pode ter passado despercebido é que, embora poucas pessoas hoje em dia aleguem certeza quanto a princípios éticos gerais, a maioria tem certeza em relação a paradigmas éticos específicos. A perda de certeza quanto aos fundamentos genéricos do valor não afetou a certeza quanto a seus casos particulares; talvez até o contrário. Três séculos atrás, quando se alegava que os fundamentos eram mais sólidos, a tortura pública até a morte era aceita por toda parte. Hoje ela é condenada quase universalmente, independentemente de diferenças de princípio. Como Ruanda ou a Bósnia podem mostrar-nos, uma condenação universal pode valer quase o mesmo que nada. Meu interesse é a relação não da teoria com a prática, mas do princípio geral com o paradigma específico. Pode não haver nenhum princípio geral provando que a tortura ou o genocídio são errados, mas isso não impede que os consideremos paradigmáticos do mal.

Parto, portanto, do pressuposto de que temos exemplos assim e de que eles mudam com o tempo, sem qualquer interesse em lhes dar uma justificativa ou mesmo um critério. Mesmo que não tenhamos princípios gerais do tipo que imaginamos terem sido acalentados por outras épocas, isso basta para meus fins. Já que não acho que seja possível definir uma propriedade intrínseca do mal, estou mais preocupada em identificar o que o mal faz conosco. Se designar algo como mau é uma maneira de assinalar o fato de que aquilo abala nossa crença no mundo, é esse efeito, mais do que a causa, que quero examinar. Em conseqüência disso, tenho ainda menos intenção de resolver o problema do mal do que de definir o mal em si. Meu interesse é, isso sim, explorar aquilo que as mudanças em nossa compreensão do problema do mal revelam sobre as mudanças em nossa compreensão de nós mesmos e de nosso lugar no mundo. Sigo em frente baseada no pressuposto cada vez mais difundido de que examinar a história da filosofia pode ser em si uma maneira de fazer filosofia. A história intelectual tradicional poderia proceder expondo os relatos do mal de sucessivos pensadores e identificando fontes e padrões de influência. Os estudos filosóficos tradicionais poderiam avaliar o sucesso de explicações conflitantes e tentar oferecer uma explicação melhor. Meu objetivo é inteiramente distinto: usar diferentes respostas para o problema do mal como uma maneira de entender quem nos tornamos nos três séculos que nos separam do início do Iluminismo.

Este livro começou como o estudo de um tópico interessante, estranhamente ignorado na historiografia da filosofia. E logo ameaçou explodir todos os limites. Se eu pelo menos estiver próxima de estar certa, o problema do mal é tão penetrante, que um tratamento completo e sistemático exigiria um tratamento completo e sistemático de grande parte da história da filosofia. A simples tarefa de listar os nomes certos pode parecer impossível. Em vez de tentar fazer isso, fiz várias escolhas que evitam essa abordagem. Em primeiro lugar, limitei minha discussão ao período que começa com o Iluminismo e fixei o início do Iluminismo em 1697, com a publicação do Dicionário, de Bayle. Há boas razões para escolher uma data anterior. Uma delas seria explorar a imagística gnóstica na pessoa creditada como o pai da filosofia moderna, René Descartes. O gênio do mal de Descartes não é um experimento mental, mas sim uma ameaça. Ao contrário de seu pálido herdeiro, o cérebro numa cuba, o diabo era uma preocupação real. E se o mundo tivesse sido criado por um Ser cuja única preocupação fosse causar-nos tormento e ilusão? Deus sabe que às vezes parece ser assim. Se a ausência de Descartes pode parecer perturbadora, a de Spinoza pode ser pior. Ambos são obviamente cruciais para compreender discussões posteriores a respeito desses problemas, mas, afinal, Platão também é. Seria fácil passar uma vida inteira estudando o problema do mal sem tirar disso nenhum proveito. Em vez disso, escolhi restringir a discussão a seu desenvolvimento desde o início do período em que começamos a ser quem somos de forma mais reconhecível. Se a história, como escreveu Bayle, é a história dos crimes e infortúnios, tentativas de dar conta dela estão fadadas não apenas à falsidade, mas também ao ridículo. Considerar que o Iluminismo começou com a pressão de provar que Bayle estava errado é uma escolha, mas não é uma escolha arbitrária.

Mesmo dentro desses limites, este estudo não pode ser completo, e para enfatizar isso escolhi uma forma não cronológica. Embora meu interesse esteja no desenvolvimento de idéias como as que ligam o segundo Discurso, de Rousseau, ao Eichmann em Jerusalém, de Arendt, explorei esse desenvolvimento de forma temática. Assim, agrupei os pensadores segundo as visões que eles têm da natureza das aparências: existe outra ordem melhor mais verdadeira, do que aquela que experimentamos, ou serão os fatos que nossos sentidos nos fazem confrontar tudo que existe? A realidade é exaurida pelo que existe ou será que ela deixa lugar para o que poderia ser? Dividir filósofos segundo sua posição em relação a uma questão ampla é uma divisão genérica e produz alianças estranhas. Entre os filósofos que insistiram em encontrar outra ordem que não aquela miserável apresentada pela experiência incluo Leibniz, Pope, Rousseau, Kant, Hegel e Marx. Dos que negaram a realidade de qualquer coisa além das aparências brutas discuto Bayle, Voltaire, Hume, Sade e Schopenhauer. Nietzsche e Freud não podem ser encaixados em nenhuma das duas categorias, por mais amplas que sejam, contudo levantam questões suficientemente similares para merecer seu próprio capítulo. Como argumento no capítulo final, o século XX apresenta problemas filosóficos específicos. A fragmentação da tradição será refletida em respostas fragmentárias ilustradas por Camus, Arendt, Adorno, Horkheimer e Rawls.

Agrupar os filósofos dessa maneira passa por cima de muitas diferenças cruciais entre eles. Mas essa divisão não é mais crua do que a separação de pensadores em racionalistas e empiricistas, esquema com o qual compartilha em parte os mesmos limites. Este último parecerá mais natural para aqueles que acreditam que as questões fundamentais da filosofia moderna são questões sobre a teoria do conhecimento. Se essas forem sua principal preocupação, você agrupará os filósofos segundo acreditem que a principal fonte de conhecimento é a razão ou a experiência e considerará incidentais outras diferenças entre eles. Mas essa divisão não era óbvia para Kant, a quem é creditada sua superação, nem para Hegel, o filósofo moderno que mais reflexão dedicou à história da filosofia em si. Para a Crítica da razão pura, a primeira controvérsia na história da filosofia diz respeito à aparência e à realidade: a última instância de julgamento é representada pelas idéias ou pela experiência? Essa questão faz-nos percorrer a história da filosofia até Platão. A preocupação que alimentou os debates sobre a diferença entre aparência e realidade não foi o medo de que o mundo pudesse, no final das contas, não ser como nos parecia — mas sim o medo de que fosse.

Muitos dos pensadores discutidos no Capítulo 1 rejeitariam a companhia um do outro. Mas, apesar dos ocasionais elementos de melancolia, todos são unidos por uma espécie de esperança de uma ordem melhor do que a que temos hoje. Os do Capítulo 2, em contraste, compartilham uma brilhante e bem-humorada tristeza que se concluiu com o estupendo pessimismo de Schopenhauer. Nietzsche e Freud cultivam uma espécie de desprezo heróico pelas discussões de assuntos anteriores aos seus e de quaisquer temas que viessem a ser abordados depois. Os pensadores escolhidos para ilustrar o pensamento do século XX sobre o mal demonstram uma humildade nascida de uma sensação de fragilidade e espanto. Pensadores podem ser agrupados em termos que pertencem à metafísica (como eles vêem a realidade das aparências?), bem como em termos vindos da psicologia (eles abrem espaço para uma posição fundamentalmente esperançosa em relação ao mundo?). Argumentarei que o problema do mal requer reflexão sobre ambas as formas. A maneira como organizamos o discurso filosófico não é a coisa mais importante posta em xeque pelo problema do mal, mas certamente é a mais fácil de mudar.

Focalizo, de maneira geral, as principais figuras do cânone. Isso sublinha o fato de que os problemas discutidos não são periféricos à tradição, mas básicos para o trabalho de seus pensadores mais centrais. Se esta fosse uma história normal da filosofia, seria irresponsável descrever a transição de Kant a Hegel sem discutir Fichte e Schelling ou passar de Hegel a Marx sem parar em Feuerbach. Fiz as duas coisas e, provavelmente, coisas piores. Meu interesse é menos identificar conexões causais entre autores do que mostrar como determinados desenvolvimentos genéricos fazem sentido. Para isso, escolher amostras de trabalhos particularmente estimulantes e importantes, na esperança de que iluminem o resto, deveria bastar. Mas centenas de textos ricos e influentes serão aqui ignorados, e as escolhas poderiam ter sido feitas de forma diferente. O único consolo para a inadequação que resulta disso é a maneira como confirma minha alegação inicial: a história da filosofia está tão imersa no problema do mal, que a questão não é por onde começar, mas sim onde parar. Uma tentativa de completude estaria condenada desde o início. Se este livro abrir novas linhas de investigação em vez de exauri-las, terá atingido seu objetivo.

Chamei isto de história alternativa da filosofia porque seus objetivos são tão diferentes quanto seu estilo e seu método. Um dos objetivos, na feliz expressão de um leitor anônimo, é reorientar a disciplina para as verdadeiras raízes do questionamento filosófico. Sou-lhe grata pela metáfora, que me permite argumentar que, de uma forma ou de outra, o problema do mal está na raiz da qual brota a filosofia moderna. Uma vez despertado, o discurso filosófico pode crescer sozinho, e seus galhos podem estender-se ou se emaranhar em todas as direções. Assim, poderiam desenvolver-se escolas inteiras de pensamento que pouco têm a ver com as questões aqui abordadas. Kant, Hume e Hegel levantaram questões que levariam filósofos, lendo-os séculos depois, a pensar na relação entre linguagem e mundo ou nos fundamentos do conhecimento. Mas se, como argumento, essas questões forem menos centrais para o núcleo de seu pensamento do que anteriormente considerado, devemos passar a ver nossa própria paisagem filosófica de forma diferente.

Este livro não se destina apenas a ser interessante tanto para quem é filósofo profissional quanto para quem não o é, mas a mostrar que, ao longo da maior parte de sua história, a filosofia em si foi interessante tanto para quem era filósofo profissional quanto para quem não o era. Como muitos outros, cheguei à filosofia para estudar questões sobre vida e morte, e aprendi que a profissionalização exige que as esqueçamos. Quanto mais eu aprendia, mais me convencia do contrário: a história da filosofia era de fato animada pelas questões que nos haviam levado até ela. Assim, escrevi de uma maneira que deveria ser acessível para quem não possui treinamento filosófico formal, minimizando ao máximo notas e outros aparatos acadêmicos. No espírito, então, daquele Iluminismo com o qual Lessing e Mendelssohn, em co-autoria, escreveram ensaios para concursos internacionais sobre as relações entre poesia e metafísica, com o qual Kant escreveu para a versão setecentista da New York Review e com o qual Sade implorou para receber obras de Rousseau na Bastilha, este livro é escrito com hesitante esperança.


NEIMAN, Susan, Introdução, O Mal no pensamento moderno: uma história alternativa da filosofia. Trad. de Fernanda Abreu. Rio de Janeiro: DIFEL, 2003.

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