“A lição da nostalgia: a invenção de uma doença” – Jean STAROBINSKI

A história dos sentimentos e das “mentalidades” levanta uma questão de método, que tem a ver com a relação entre os sentimentos e a linguagem.

Os sentimentos cuja história queremos retraçar só nos são acessíveis a partir do momento em que se manifestaram, verbalmente ou por qualquer outro meio expressivo. Para o crítico, para o historiador, um sentimento só pode ser objeto de estudo depois que aparece num texto. Nada de um sentimento é captável aquém do ponto em que ele é nomeado, em que se designa e se exprime. Portanto, não é a própria experiência afetiva que se oferece a nós, mas apenas a parte da experiência afetiva que passou por um enunciado pode solicitar o historiador.

Que um sentimento se inscreva num nome (e que esse nome tenha tido em seu tempo um caráter de novidade) é algo que não ocorre sem ter consequências dignas de atenção. De um lado, a passagem à verbalização (à consciência linguística de si) é o início de uma reflexão e, às vezes, de uma crítica. De outro, assim que o nome de um sentimento é trazido à luz — como a moda sabe fazê-lo —, a palavra, por sua eficácia própria, contribui para fixar, propagar, generalizar a experiência afetiva de que é o indício. O sentimento não é a palavra, mas só pode se disseminar através das palavras. A rigor, e quando estão no auge de sua aceitação, certas palavras chegam a cobrir o que não lhes corresponde. La Rochefoucauld dizia, forte e simplesmente: “Há pessoas que jamais teriam se apaixonado se não tivessem ouvido falar do amor”. Flaubert narrativizou a sentença. André Gide, durante a Primeira Guerra Mundial, observara que a linguagem dos jornalistas (que não tinham estado no front) fornecia os clichês por meio dos quais os soldados que voltavam da frente de batalha descreviam as suas emoções. Nos nossos dias, o vocabulário da psicanálise oferece aos nossos sentimentos o modelo possível de sua significação, propõe-lhes uma forma. Esta, embora simplesmente “aplicada” à experiência interior, não demora a se tornar indissociável dela; a verbalização da experiência afetiva entra em composição na própria estrutura do vivido. Sabemos discernir a regressão nos nossos arredores, em todas as “redes”. Portanto, a história dos sentimentos não pode ser nada além da história das palavras em que a emoção se enunciou. A tarefa do historiador, nesse campo, se aparenta à do filólogo; é preciso saber reconhecer os diversos “estados da língua”, o estilo próprio pelo qual a experiência singular ou coletiva escolheu se expressar: é uma semântica histórica que se deve manter em alerta.

Assim, no esboço que proponho traçar de uma história da nostalgia, vou me esforçar em deixarem falar as linguagens passadas e em evitar pôr sobre os documentos do passado a grade explicativa da ciência psicológica atual. Pelo menos só recorrerei a isso acessoriamente, em última análise. Gostaria de deixar ouvir a voz obsoleta (mas original) de uma psicologia que não é mais a nossa: verificaremos que ela recorria a uma linguagem bastante coerente, não menos aceitável (no contexto da época) do que é para nós o sistema explicativo da psicologia moderna. Isso leva a pressentir que, no caráter relativamente inacabado dessa ciência, também a sua linguagem está ameaçada de obsolescência. Razão a mais para não lhe pedir que decida em último recurso. Sua decisão seria rapidamente sujeita a revisão.

Sem dúvida, nada impede aplicar à exploração do passado, à análise dos sentimentos dos homens de outra época, os instrumentos de conhecimento de que hoje dispomos. Temos o direito de falar do sadismo de Nero, assim como temos o direito de medir o carbono radioativo das pedras lascadas pré-históricas. Só que não devemos esquecer que a palavra “sadismo”, do mesmo modo que o contador Geiger faz parte do nosso equipamento moderno. É um vocábulo de que o exegeta dispõe: não é uma realidade que preexistiria a seu emprego. Aqui, de novo, é preciso levar em conta a função fundamental da palavra.

HISTÓRIA DOS SENTIMENTOS: UM RESUMO DAS DISTÂNCIAS

Seja qual for o nosso desejo de alcançar a realidade do passado, não podemos fazer de outra forma senão recorrendo à linguagem da nossa época para constituir o que será o saber da nossa época, e se possível daquela que se seguirá. Mas uma coisa é interpretar ao nosso modo os sentimentos dos homens do século XVIII, outra coisa é prestar atenção na linguagem em que eles mesmos os interpretaram. A distância histórica, que dá ao passado o seu valor de passado, na medida do possível deve ser respeitada. Querendo projetar sem precaução as noções que hoje nos são familiares, amalgamaríamos linguagens que não devem ser confundidas, faríamos do passado um falso presente, ficaríamos incapazes de respeitar a defasagem obrigatória entre o nosso sistema interpretativo e aquilo que é submetido a ele. Perderíamos de vista o caráter operacional e conjectural da interpretação, para fundir num só texto a interpretação e o seu pretexto. É inevitável falarmos a linguagem de nossa época. É desejável, em compensação, evitarmos atribuir a figuras do passado o teor afetivo de nossa experiência presente, e conseguirmos não confundir as vozes que nos interpelam de outros lugares com o tom de voz da nossa interpretação.

Isso não é, de jeito nenhum, presumir o caráter inatingível, o inobjetivável “objeto” da nossa pesquisa. Jamais poderemos atingir, tal qual, a experiência subjetiva de uma consciência do século XVIII. Podemos apenas nos abster de lhe atribuir ingenuamente os nossos problemas e nossos “complexos”: podemos lhe fazer o favor e a polidez de tratá-la como estrangeira, como habitante de um país longínquo cujos usos e língua são diferentes e devem ser pacientemente aprendidos.

Para os sociólogos (desde Montesquieu e Rousseau), estas são verdades primeiras: não parece que seja a mesma coisa para a maioria dos psicólogos, demasiado propensos a reencontrar em qualquer tempo e em qualquer lugar os comportamentos que aprenderam a reconhecer e com os quais construíram a teoria. A história das teorias da nostalgia, portanto, não deixará de ter utilidade, se ela se prestar a provocar alguma desordem e nos obrigar a observar distâncias até aqui mal percebidas.

Assistimos, primeiro, à criação de uma doença; a história nos ensina que a palavra “nostalgia” foi inteiramente forjada para fazer entrar um sentimento bastante particular (Heimweh, saudade, desiderium patriae) no vocabulário da nomenclatura médica. Que os exilados se abatem e definham longe da pátria, não era uma constatação nova quando Johannes Hofer de Mulhouse defendia em Basileia a sua tese sobre a nostalgia. A novidade consistia na atenção do médico, na decisão de considerar esse fenômeno afetivo como uma entidade mórbida e submetê-la às interpretações do raciocínio médico. Quando se iniciava na medicina a empreitada dos inventários e das classificações, quando, sobre o modelo da botânica sistemática, fazia-se o esforço de traçar o quadro das genera morborum [classificação das doenças], era preciso ficar à espreita de todas as variedades com que o repertório podia se enriquecer. A tradição conhecia muito bem a melancolia amorosa; descrevia nos pormenores os sintomas e as lesões somáticas provocadas pela privação do objeto amado. Mas essa mesma tradição jamais considerara os distúrbios resultantes do afastamento do meio habitual. Tão grande era a autoridade da tradição que se percebeu muito tarde a necessidade de interpretar medicamente o desiderium patriae, por próximo que fosse do desiderium amoroso. Não se tratava, nos dois casos, do efeito mortal da tristeza?

Antes de serem reconhecidas como estados anormais, certas doenças são apenas uma turbulência do curso habitual da vida, da qual ninguém pensa em separá-las. Enquanto o paciente não cogita em requisitar a ajuda do médico, e enquanto a linguagem médica não comporta nenhum vocábulo que possa designar esses distúrbios, a sua existência é nula. Mal e mal é um paradoxo dizer que essas doenças só existem, como doenças, pela atenção que recebem. Reconhecê-las torna-se, então, um dever.

A atenção que Johannes Hofer dava ao Heimweh foi decisiva. Ele pensou primeiro em lhe atribuir um nome grego, pois em 1688 não era conveniente que uma doença, primitivamente designada por um nome vulgar, não tivesse o seu traje de gala, tirado das línguas clássicas. Hofer teve uma ideia feliz: com o auxílio dos termos “retorno” (nóstos) e “dor” (álgos), criou “nostalgia”, palavra cuja fortuna foi tamanha que esquecemos completamente a sua origem. Ela nos é tão familiar que mal a imaginamos como sendo de formação recente e, sobretudo, de formação erudita. Esse neologismo pedante foi tão bem-aceito que acabou perdendo o sentido primitivamente médico e fundiu-se na língua comum. Entrou tarde no Dictionnaire de l’Académie: 1835. O seu êxito o despojou de qualquer significado técnico; tornou-se um termo literário (portanto, vago). Esse costuma ser o destino dos vocábulos que designam doenças mentais em voga: aventura semelhante ocorreu com a palavra “melancolia” (a qual os psiquiatras do século XIX já não queriam, de tal forma estava aviltada) e não está longe de ocorrer com a palavra “esquizofrenia”, outro neologismo criado na Suíça.

Graças à tese de Johannes Hofer, o Heimweh fazia a sua estreia na nosologia séria. Esse mal provinciano iria se tornar uma entidade universalizável; estudantes iriam dissertar a seu respeito, defender novas teses sobre as suas causas e os seus efeitos. O nostálgico sentiu-se então no direito de esperar a opinião esclarecida da universidade, e não mais os conselhos arriscados dos camaradas e dos empíricos. Mais ainda, essa doença, até então limitada às almas simples (soldados mercenários, moças do campo transplantadas para a cidade), aproveitará a aprovação da universidade para se difundir e atacar até mesmo os indivíduos cultos; conhecendo-a, procurando preveni-la, eles passam a temê-la, volta e meia se prevalecem dela e a transmitem aos outros por seus próprios temores. Sabemos que há doenças — entendo sobretudo doenças nervosas e “morais”, neuroses ou até psicoses — que se transmitem porque se fala delas. A palavra as induz e faz função de agente contaminador. No fim do século XVIII, começam-se a temer os longos afastamentos do próprio país porque se fica sabendo que a nostalgia ameaça, e chega-se a morrer de nostalgia porque os livros declaram que a nostalgia é frequentemente uma doença mortal. Para o médico que vê morrer em Paris um pequeno habitante da Savoia, o diagnóstico que se impõe é esse. Singular século XVIII, em que os ingleses, para curar o seu spleen, fugiam do ar natal e partiam para um Grand Tour em busca do ar sereno do Sul, enquanto outros acreditavam se expor ao risco de morte pelo simples afastamento das paisagens familiares! Sem dúvida, além das teorias contraditórias, é preciso examinar as condições em que um homem se afastava de seu lugar natal. Uma coisa é partir munido de dinheiro, tendo livremente escolhido o itinerário e a duração da ausência, outra coisa é se afastar obrigado a isso, para viver uma vida dependente e monótona. Essa era, desde o século XVII, a sorte dos soldados suíços no serviço estrangeiro; era igualmente a sorte dos marinheiros ingleses levados à força nos barcos da Navy: a calentura, variante marítima da nostalgia, resultava do efeito conjugado do sol tropical e das saudades da terra.

O BOM AR SUÍÇO

A interpretação de Johannes Hofer, em 1688, recorre à noção clássica do imaginatio laesa [imaginação perturbada]. Sua descrição da nostalgia se liga à psicossomática de tradição greco-latina. Se determinados termos que utiliza fazem pensar na influência bastante próxima de Thomas Willis, outros remetem aos antigos mestres, como Areteu da Capadócia e Galeno:

A nostalgia nasce de um desarranjo da imaginação, donde resulta que o suco nervoso sempre toma uma só e mesma direção no cérebro e, por isso, apenas desperta uma só e mesma ideia, o desejo do retorno à pátria […]. Os nostálgicos só são tocados por poucos objetos externos, e nada supera a impressão que causa neles o desejo do retorno: enquanto no estado normal a alma pode se interessar igualmente por todos os objetos, sua atenção à nostalgia é diminuída, ela só sente atração por muito poucos objetos e se limita quase a uma só ideia. Admitirei de bom grado que existe aí uma parte de melancolia, pois os espíritos vitais, fatigados pela ideia única que os ocupa, se esgotam e provocam representações errôneas.

Segue-se um certo número de exemplos muito sugestivos.

Por que, pergunta Johannes Hofer, os jovens suíços são tão frequentemente propensos à nostalgia quando vão ao estrangeiro? Talvez porque muitos deles jamais tenham deixado a casa familiar; porque nunca penetraram num meio diferente. Então, para eles é difícil esquecer os cuidados com que sua mãe os cercava. Têm saudades das sopas que costumavam tomar no café da manhã, do bom leite do vale, e talvez também da liberdade de que gozavam na pátria… O psicólogo contemporâneo será grato a Johannes Hofer por ter logo de saída sublinhado o papel da “carência socioafetiva”: saudades da infância, das “satisfações orais” e dos mimos maternos.

Mas essa explicação não deixava de provocar objeções entre os contemporâneos ou entre os sucessores imediatos de Hofer, sobretudo entre os que sentiam vibrar a fibra patriótica. Atribuir a nostalgia a uma causa moral dessa espécie não é, ao mesmo tempo, imputar aos jovens suíços uma excessiva pusilanimidade? Não é atentar ao bom renome de uma raça vigorosa, livre, forte, corajosa? Para defender a honra nacional, o zuriquense Jean-Jacques Scheuchzer, em 1705, propõe uma interpretação totalmente mecânica da nostalgia. A moda, depois de Borelli e Hoffmann, é da iatromecânica e da medicina “sistemática”: explicam-se as doenças de modo mais especulativo que experimental, pelas leis que regem os corpos inanimados do mundo físico. Hofer procurara as causas morais de um mal físico; a ciência da época autorizava buscar as causas físicas de uma paixão moral. Durante todo o século, a discussão prosseguirá, para terminar aceitando-se simultaneamente as duas hipóteses: influência do moral sobre o físico e influência do corpo sobre a alma. Os livros de J.-P. Marat e de Cabanis, entre muitos outros, nos instruem desde o próprio título.

Para Scheuchzer, o recurso à explicação física permite desculpar o moral dos suíços. O jogo necessário das causas físicas não dá motivos para críticas. Não hesitemos, a nostalgia é questão de pressão atmosférica. Os suíços moram nos mais altos cumes da Europa. Respiram, incorporam um ar leve, sutil, rarefeito. Descendo para a planície, o seu corpo sofre uma pressão aumentada, cujo efeito é tanto maior quanto o ar interno (“que trouxemos conosco”) oferece menor resistência. Em compensação, um holandês, nascido e criado nas planícies, traz em si um ar pesado, que resiste bem à pressão ambiente das pesadas brumas. No nível do mar, os pobres suíços serão comprimidos pela atmosfera exterior: o sangue circulará difícil e lentamente pelas pequenas artérias cutâneas; os jovens sofrerão bem mais em razão da flexibilidade de suas fibras, que vão se deixar mais facilmente deprimir; assim, porque recebe menos sangue, o coração ficará oprimido e entristecido; serão perdidos o sono e o apetite; em breve surgirá a febre, quente ou lenta, quase sempre mortal. Quais são os remédios? Se não é possível repatriar o doente, ou licenciar o soldado, ou simplesmente incutir-lhe a esperança do retorno, o tratamento mais lógico consistirá em alojá-lo numa colina ou numa torre, onde respirará um ar mais leve; também será possível ministrar-lhe medicamentos contendo “ar comprimido”: salitre, nitro fixo, espírito de nitro. A cerveja e o vinho novo, ricos em substâncias leves, serão salutares… A explicação de Scheuchzer dá, ao mesmo tempo, a razão dos efeitos favoráveis do clima suíço. Acaso a Suíça não é o asylum languentium [asilo de doentes]? Não vemos acorrerem para lá, de todas as regiões da Europa, homens carregados de ar pesado, que vão se restabelecer nas nossas montanhas? Sentimos surgir o estilo do prospecto hoteleiro no elogio feito por Scheuchzer aos benefícios do ar leve: os canais do corpo se dilatam, a circulação se faz melhor, todos os sucos são suavemente postos em funcionamento…

Não vamos rir dele: tendo decidido propor uma explicação física, Scheuchzer não podia falar outra linguagem senão a da barometria e da hidrostática de sua época. A biofísica apenas transporta para dentro do que é vivo os “modelos” e as noções adquiridas na experiência da matéria. Boas almas como o padre Du Bos e Albrecht von Haller não farão objeções às explicações de Scheuchzer. Depois, o vento mudará e as pessoas vão se desiludir com o iatromecanismo: o vitalismo de Montpellier, as teorias da escola de Edimburgo sobre a atividade nervosa promoverão uma renovação favorável às explicações que incriminam a tristeza, a ideia fixa. No todo solidário que a rede de nervos liga ao cérebro, não haverá ideia fixa, não haverá tristeza persistente que não suscite, com o tempo, uma lesão orgânica.

MELODIAS E PAIXÕES

A nostalgia é um transtorno íntimo ligado a um fenômeno de memória. Não surpreendia que se aplicasse à nostalgia a teoria associacionista da memória, tanto mais que certos fatos, relativos às circunstâncias determinantes do acesso nostálgico, apareciam como exemplos especialmente eloquentes da lei de associação de ideias.

Em 1710, Theodor Zwinger, de Basileia, numa dissertação em latim, menciona a curiosa aparição de um estado de tristeza intensa nos militares suíços servindo na França e na Bélgica, quando ouvem “uma certa cantilena rústica, aos sons da qual os camponeses suíços fazem pastar seus rebanhos nos Alpes”. Essa Kühe-Reyhen, essa “Ranz des vaches”,* tem o poder de avivar abrupta e dolorosamente a lembrança da pátria. Será sobremaneira funesta naqueles cujo sangue já se alterou com a mudança de ares, ou nos sujeitos naturalmente propensos à ansiedade. Foi por isso que, afirma Zwinger, diante dos efeitos desastrosos dessas melodias, os oficiais viram-se obrigados a proibi-las e a punir com severidade aqueles que persistissem em tocá-las, cantá-las ou simplesmente assobiá-las. Ainda passa quando surgem febres ardentes: mas o mais grave são as deserções. Para os capitães, que equipavam pessoalmente os seus homens, às vezes com grandes despesas, uma deserção significava a perda de parte do capital investido. Era preciso tomar todas as medidas contra essa ideia fixa, que incitava o soldado a voltar para a sua terra ou morrer. Pois a lenda era solidamente crível: se o nostálgico não obtiver a permissão salvadora ou não conseguir se evadir, vai se suicidar, procurar a morte na primeira ocasião. Ramazzini, desde 1700, no capítulo de medicina militar de seu tratado, mencionava um belo e terrível ditado corrente nas forças armadas: Qui patriam quaerit, mortem invenit (“Quem procura a pátria encontra a morte”). Tudo isso pelo efeito de uma melodia popular, de uma “pequena frase” que tem o poder singular de provocar um acesso de hipermnésia: a ilusão da quase presença do passado, desdobrada no sentimento doloroso da separação.

Havia aí algo para confirmar e ilustrar com muita eloquência as afirmações de Malebranche: “Os traços do cérebro se ligam tão bem uns aos outros que não podem mais despertar sem todos aqueles que foram impressos ao mesmo tempo”.

Também era possível recorrer a Locke e a Hutcheson: eles mostraram como as associações de ideias determinavam as fobias, os preconceitos, ligando muito fortemente uma circunstância acidental e uma ideia, a tal ponto que qualquer repetição da circunstância despertava necessariamente a ideia. Era o aspecto nefasto da associação, impedindo que a razão se determinasse de modo saudável.

Hartley propõe uma teoria das ideias complexas; basta que um elemento do complexo seja evocado para tirar do esquecimento aqueles que lhe são associados:

Quando várias ideias são associadas juntas, a ideia visível, sendo mais clara e mais distinta que as outras, faz, para todas, as vezes de símbolo, sugere-as e liga-as todas juntas; há algo semelhante a isso na primeira letra de uma palavra ou nas primeiras palavras de uma sentença, que costumam servir para apresentar todo o resto ao espírito […]. Quando as palavras adquiriram algum poder considerável de excitar vibrações agradáveis e divertidas no sistema nervoso, com frequência associando-as como fazemos com as coisas, podem transferir uma parte dos sofrimentos e dos prazeres para coisas indiferentes, estando associadas a elas com muita frequência em algum outro tempo. É uma das principais fontes dos prazeres e dos sofrimentos artificiais da vida humana.21

Bem mais, essas reminiscências associadas podem adquirir um grau de intensidade comparável ao de uma sensação atual. Nesse caso, não é mais uma vibração “em miniatura” que se produz em nossa “substância medular”: são “vibrações vivas, iguais àquelas excitadas pelos objetos impressos nos sentidos”.22 Caberá a John Gregory enunciar, a partir desses princípios, uma explicação dos fenômenos da memória afetiva e da memória involuntária:

As paixões se exprimem naturalmente por diferentes sons; mas essa expressão natural é passível de uma extensão muito grande […]. Quando uma sequência de sons particulares ou uma certa melodia impressiona uma alma ainda terna, assim como a expressão musical de certas paixões enunciadas numa poesia, essa associação regular faz com que esses sons se tornem, com o tempo, uma espécie de linguagem natural e expressiva dessas paixões. A melodia deve, portanto, ser considerada até certo grau como uma coisa relativa, baseada nas associações de ideias e nos hábitos particulares de diferentes pessoas, e transformada pelo costume na linguagem dos sentimentos e das paixões. Escutamos com prazer a música a que estamos acostumados desde nossa juventude, talvez porque nos lembre os dias de nossa inocência e de nossa felicidade. Às vezes ficamos singularmente afetados com certas melodias que não nos parecem, nem a nós nem aos outros, ter expressão particular. A razão é que ouvimos essas músicas num tempo em que nossa alma estava profundamente afetada por alguma paixão para deixar sua marca em tudo o que se apresentava a ela naquele momento; e embora essa paixão tenha se desfeito por inteiro, assim como a lembrança de sua causa, a presença de um som que se encontra, porém, associado a ela costuma então despertar o sentimento, embora o espírito não consiga se lembrar de sua causa primitiva.
Semelhantes associações se formam pelo uso quase arbitrário que as diferentes nações fazem dos instrumentos peculiares, tais como os sinos, o tambor, a trombeta, o órgão, que em consequência desse uso excitam em certos povos ideias e paixões que não excitam em outros.

Rousseau, em seu Dictionnaire de musique, recorrerá a uma explicação análoga para dar conta dos efeitos da “Ranz des vaches”:

Procuraríamos em vão nessa Melodia os acentos enérgicos capazes de produzir efeitos tão espantosos. Esses efeitos, que não têm nenhuma ação sobre os estrangeiros, só vêm do hábito, das lembranças de mil circunstâncias que, retraçadas por essa Melodia naqueles que a ouvem, e lembrando-lhes seu país, seus antigos prazeres, sua juventude e seu modo de viver, excitam neles uma dor amarga por terem perdido tudo isso. Então, a Música já não age exatamente como Música, mas como sinal memorativo.

A melodia, fragmento do passado vivido, toca os nossos sentidos, mas arrasta consigo, no modo imaginário, toda a existência e todas as imagens associadas das quais era solidária. O sinal memorativo é uma presença mental que nos faz sentir, com dor e delícia, a iminência e a impossibilidade da restituição completa do universo que se foi e que emerge fugazmente fora do esquecimento. Despertada pelo sinal memorativo, a consciência se deixa invadir por um passado a um só tempo próximo e inacessível. Toda uma infância reaparece em imagem através de uma melodia, mas para se esquivar e nos deixar às voltas com essa “paixão da lembrança” em que Madame de Staël verá “a mais inquieta dor que pode se apoderar da alma”.

Para os observadores da segunda metade do século XVIII, a via privilegiada dessa magia associativa é o sentido da audição: a música não está em causa sozinha, o ruído das fontes e o murmúrio dos riachos são dotados de poder análogo. Albrecht von Haller, num texto tardio em que rejeita as suas primeiras hipóteses mecanicistas, evoca o papel de certas inflexões da voz. Fenômenos de paramnésia, falsos reconhecimentos no campo auditivo, constituem os primeiros sinais da doença: “Um dos primeiros sintomas é encontrar a voz das pessoas que amamos na voz daqueles com quem conversamos, e rever a família nos sonhos”.

Exílio, músicas alpestres, memória dolorosa e terna, imagens douradas da infância: esse encontro de temas conduz a uma teoria “acústica” da nostalgia que contribuirá para a formação da teoria romântica da música e para a definição mesma do romantismo. Não farei aqui o inventário da vasta literatura poética suscitada pela nostalgia e pela “Ranz des vaches”. Seria preciso, no mínimo, salvar os Pleasures of Memory, de Samuel Rogers, e certos versos do padre Delille:

Assim as lembranças, as saudades e o amor,
E o melancólico e doce devaneio,
Voltam aos lugares caros à alma enternecida,
Em que fomos crianças, amantes, amados, felizes.

Caberá a Senancour prosseguir a reflexão de Rousseau e negar que o efeito da “Ranz des vaches” se deva a uma associação acidental: essa música não é insignificante por si só, é a expressão mais fiel do mundo sublime da montanha. A invenção musical dos pastores é a própria voz da natureza alpestre:

Foi nos sons que a natureza pôs a mais forte expressão do caráter romântico; é sobretudo no sentido da audição que é possível tornar sensíveis, em poucos traços e de maneira enérgica, os lugares e as coisas extraordinárias […]. A voz da mulher amada será mais bela ainda que seus traços; os sons que reconstituem os lugares sublimes causarão uma impressão mais profunda e duradoura que suas formas. Não vi quadro dos Alpes que os tornasse presentes como pode fazê-lo uma melodia realmente alpestre. A “Ranz des vaches” não lembra apenas recordações, ela pinta […]. Se é expressada de maneira mais justa que erudita, se quem a toca a sente bem, os primeiros sons nos colocam nos altos vales, perto das rochas nuas e de um cinza arruivado, sob o céu frio e o sol ardente […]. Somos penetrados pela lentidão das coisas e pela grandeza dos lugares.

Essas páginas encontrarão eco, expressamente confessado, numa das mais belas composições de Liszt.

Kant, em sua Antropologia, propõe uma interpretação mais radical dessa paixão insensata: o que deseja o nostálgico não é o lugar da sua juventude, mas a sua própria juventude, a sua própria infância, ligada a um mundo anterior. O seu desejo não está dirigido a um local que ele poderia reencontrar, mas para um tempo da sua vida para sempre irrecuperável. Voltando à sua terra, o nostálgico continua a ser infeliz, pois lá encontra pessoas e coisas que não mais se parecem com o que haviam sido. Não lhe devolvem a sua própria infância ligada a um mundo anterior. Antes que Rimbaud dissesse “Não se parte”, Kant também nos preveniu: não há retorno.

A literatura da nostalgia pôde assim propor fórmulas já feitas, grandes lugares-comuns em que o sentimento inadaptado ou “alienado” da juventude romântica buscou a sua expressão: logo reaparecerão, misturados aos temas que acabamos de evocar, os motivos platônicos da pátria celeste e do exílio terrestre. A experiência dolorosa da consciência arrancada do seu meio familiar vai se tornar a expressão metafórica de um dilaceramento mais profundo, no qual o homem se sente separado do ideal. Mas é a lição de Goethe que deveria ser escutada aqui: a figura de Mignon, que ele traçou em seu Wilhelm Meister, é a mais bela, a mais musical das imagens da nostalgia. Ela é a filha da união incestuosa do harpista com sua irmã. Nisso, eu leio o erro que consiste em não aceitar o outro, em só se conjuntar consigo mesmo. A educação do herói passa pelo encontro da nostalgia. É bom que ele tenha conhecido o seu poder de sedução e destruição.

O PERIGO DO DESMEMBRAMENTO

No fim do século XVIII, a existência da nostalgia, considerada como um mal via de regra mortal, é reconhecida por todos os médicos em todos os países da Europa; admite-se que todos os povos e todas as classes sociais podem estar sujeitos a ela, dos lapões da Groenlândia aos negros jogados na escravidão. Os grandes exércitos nacionais, que convocam ao dever militar os filhos das províncias mais recônditas, veem ocorrer, às vezes de modo epidêmico, o terrível mal das “saudades da terra”. Um exemplo entre outros (narrado pelo historiador Marcel Reinhard) vai nos permitir ver como a nostalgia era levada a sério e como era temida:

No dia 18 de novembro de 1793, em circunstâncias políticas e militares alarmantes, o adjunto do ministro da Guerra, Jourdeuil, informou ao general-chefe do exército do Norte decisões que deviam galvanizar as tropas e manter os efetivos. Entre as medidas de rigor, figurava a supressão das permissões de convalescença, com uma única exceção, e que dá o que pensar: a licença seria excepcionalmente concedida caso o doente estivesse sofrendo de “nostalgia ou saudades da terra”. Era de fato preciso que a doença fosse considerada como uma afecção grave para que justificasse tal exceção, a despeito da situação.

Um médico militar, Boisseau, nos dá razão: “Todo soldado que é profundamente afetado por isso deve ser dispensado antes que um de seus órgãos fique irremediavelmente lesado. Fazendo esse ato de justiça, conserva-se no Estado um cidadão, do qual não se poderia fazer um bom defensor”. Outros médicos, sem dúvida, mostram-se mais espertos: basta, pensam eles, acenar com a promessa do retorno ao lar, e o nostálgico vai se deixar enganar por palavras, não vai ser necessário lhe conceder a licença; acreditam poder conseguir excelentes resultados multiplicando nas forças armadas as músicas, as brincadeiras, os contadores de histórias, os lustig** profissionais; só uma minoria preconiza a hospitalização, a sangria (mas, na sujeira e na promiscuidade dos hospitais da época, isso é apressar o desfecho fatal da nostalgia); alguns, por fim, recomendam a maneira forte, os métodos brutais que os médicos usavam no tratamento das doenças mentais. Num livro intitulado La Santé de Mars, publicado em 1790, o médico Jourdan Le Cointe propusera medidas draconianas; a nostalgia pode ser vencida pela dor ou pelo terror: afirmarão ao soldado nostálgico que “um ferro em brasa, aplicado na barriga” vai curá-lo imediatamente. Assim fizera, em 1733, um general russo, quando o seu exército, que avançara na Alemanha, andava às voltas com a nostalgia: “Ele mandou dizer que os primeiros que caíssem doentes seriam enterrados vivos; tendo esse castigo sido aplicado no dia seguinte a dois ou três, não houve mais um só melancólico em todo o exército”.

O grande negócio era conseguir diferenciar o verdadeiro nostálgico do simulador. Para quem não consegue se acostumar com a vida militar e o perigo, como não desejar contrair uma doença que é a única maneira legal de fugir de uma situação intolerável? No verdadeiro nostálgico, a doença, favorecida pelo temor ou pelo exemplo, já é um comportamento, uma busca de refúgio; como então distinguir a nostalgia voluntária daquela que não é? O problema prenuncia o que enfrentarão, no fim do século XIX, os médicos atentos em distinguir entre as paralisias simuladas e aquelas que acompanham a histeria, conduta patológica que não decorre da vontade refletida. Para os médicos do exército napoleônico, uma série de sinais objetivos permitiam detectar os que ludibriavam: eles não têm as modificações de pulso, o olhar brilhante, o emagrecimento catastrófico que figuram entre os sintomas autênticos da doença.

Pensou-se ser possível fixar um quadro clínico da nostalgia. Aqui, reunidas por Philippe Pinel, estão as manifestações mórbidas que guiavam o médico de 1800 ao diagnóstico da nostalgia:

Os principais sintomas […] consistem num ar triste, melancólico, num olhar estúpido, olhos às vezes desvairados, rosto às vezes inanimado, um desgosto geral, uma indiferença por tudo; o pulso ora é fraco, lento; ora é rápido, mas apenas sensível; uma sonolência um tanto constante; durante o sono, algumas expressões escapadas junto com soluços e lágrimas; a quase impossibilidade de sair da cama, um silêncio obstinado, a recusa de bebidas e de alimentos, o emagrecimento, o marasmo e a morte. A doença não é, entre nós, levada a esse último grau; mas se não é funesta de maneira direta, torna-se de maneira indireta. Alguns têm bastante força para superá-la; em outros, é mais longa e por conseguinte prolonga sua permanência no hospital; mas essa permanência prolongada quase sempre se torna para eles funesta, pois mais cedo ou mais tarde são atacados pelas doenças que reinam de maneira terrível nos hospitais militares, tais como as disenterias, as febres remitentes, as febres adinâmicas, atácticas etc.

Conforme vemos, em sua forma simples a nostalgia é uma doença moral que, por si só, já pode levar à morte; em sua forma complicada, doenças intercorrentes apressam o final do pobre paciente. Na verdade, a medicina do fim do século XVIII e do início do século XIX atribui às causas morais uma importância ao menos igual à que hoje lhes reconhecem os psicossomáticos mais resolutos. Para Pinel, para o barão Larrey, para Percy e seus numerosíssimos alunos, a ideia obsessiva provoca uma lesão ou uma irritação cerebral, e estas, em virtude das teorias “solidistas”, nas quais o sistema nervoso reina soberano, logo provocam as lesões viscerais mais variadas. “O cérebro e o epigastro são afetados simultaneamente. O primeiro concentra todas as suas forças numa só ordem de ideias, num só pensamento; o segundo se torna o centro de impressões incômodas, de compressão espasmódica” (Percy e Laurent). Mas essa “excitação encefálica perseverante”, segundo Bégin, possui a propriedade de “reagir não só sobre o epigastro, mas sobre todas as principais vísceras, que são simpaticamente afetadas”. Para essa medicina que ainda ignora os agentes infecciosos, todos os estados inflamatórios meníngeos, todas as gastroenterites e as pleurisias observadas na autópsia dos nostálgicos encontram sua causa e origem na própria nostalgia: são expressões orgânicas, formas extremas desse mal.

Auenbrugger, o inventor da percussão, descreve os efeitos da nostalgia de um modo que merece ser citado:

O corpo definha, enquanto todas as ideias se concentram numa inútil respiração, e uma faixa pulmonar resulta, na percussão, em um som opaco. Abri inúmeros cadáveres de pacientes mortos dessa afecção, e em todos encontrei pulmões muito aderentes à pleura torácica, o tecido dos lobos situados do lado da opacidade apresentando um espessamento caloso e uma purulência mais ou menos marcada.37

Ao lermos essas linhas, temos a impressão de que tudo se passa, na imaginação do médico, como se interviesse uma afinidade secreta e obrigatória entre o humor sombrio, o ensombrecimento moral do nostálgico e o ensurdecimento da sonoridade torácica. Um idêntico véu fúnebre vem ofuscar os pensamentos e pulmões do nostálgico: a opacidade pulmonar é a imagem concreta do sombrio psicológico.

Para nós, a coisa é clara: trata-se de tuberculose, e os clínicos “organicistas”, mais tarde, não hesitarão em dizer que as alterações do humor são, na verdade, as consequências da tuberculose, não sua causa. De todo modo, é essa a opinião que prevalece no final do século XIX. À medida que a anatomia patológica progride, à medida que a bacteriologia multiplica suas descobertas, vemos a nostalgia perder pouco a pouco a importância que ainda lhe conferiam os médicos da época romântica; simultaneamente, quando se estabelece um regime militar menos rude, quando um tratamento melhor é reservado aos marinheiros, quando os soldos tornam-se mais substanciais e os castigos corporais são aplicados com menos frequência, as estatísticas dos hospitais militares ingleses e franceses veem diminuir os casos anunciados de nostalgia. Com algumas exceções: os soldados dos corpos expedicionários, os primeiros colonos europeus da Argélia, sobretudo se foram recrutados a contragosto.

Numa data tardia, em 1873, a Academia de Medicina coroa a notabilíssima memória sobre a Nostalgia do médico militar Auguste Haspel. Podemos ver aí, se quisermos, o combate de retaguarda travado pela tendência psicossomática da velha tradição, destinada a ser brevemente suplantada pelas descobertas modernas da patologia celular e da bacteriologia. Mas também podemos distinguir, de muitos pontos de vista, uma linguagem prenunciadora da psicossomática do século XX. Haspel nos propõe uma visão unitária da doença, aceita que busquemos a etiologia verdadeira na vida afetiva, já que ela é capaz de uma repercussão orgânica múltipla e profunda:

A nostalgia é uma manifestação viciosa e perturbada da vida, sob a influência de um dano da parte moral e afetiva do indivíduo, isto é, do caráter […]. Esses distúrbios, essas alterações orgânicas não vieram sozinhos, não se produziram por si sós no estado em que os vemos o mais das vezes; tiveram um começo; portanto, há alguma coisa que os precedeu, que os trouxe, e essa alguma coisa é a ideia triste, é essa infeliz disposição da alma que determinou essas modificações orgânicas — as quais não constituem, por si mesmas, a causa da doença, mas apenas uma de suas expressões anatômicas. A nostalgia, eis o fato primitivo inicial, essencial e, se posso dizer assim, a espinha patológica; isto quer dizer que nada começou antes dele e que ele é, nos primeiros tempos, toda a doença.

Mas, nessa data, Haspel lutava por uma causa perdida. O movimento da descoberta científica se encaminhava para outra direção. No contexto da era pasteuriana e da anatomia patológica em plena expansão, as ideias de Haspel, se tivessem sido ouvidas, apenas teriam tido um efeito retardativo. Possuíam, naquele momento, um significado reacionário. Havia mais a ganhar, para a medicina em 1873, em recorrer aos métodos (tão profundamente criticados por Haspel) de desmembramento da totalidade humana, de análise, de exame dos órgãos isolados. Embora Haspel estivesse certo ao dizer que não se alcançava o primum movens [motor primário] psicológico da doença, era melhor não escutá-lo. Fazendo a caça aos bacilos, era menor o risco de se iludir com as palavras, ainda que fosse para perder de vista provisoriamente a unidade da pessoa que sofria, o caráter “histórico” e individual da doença (com o qual a medicina atual se preocupa mais). Os métodos clínicos terão ensinado, nesse meio-tempo, a reconhecer melhor uma pluralidade de fatores: a parte do “terreno”, a transmissão dos transtornos psicológicos por intermédio do sistema neurovegetativo ou hormonal, o papel não menos considerável dos agentes microbianos ou tóxicos que a isso se acrescentaram.

UMA LITERATURA DA INFÂNCIA PERDIDA

Banida dos manuais da clínica médica, acaso a nostalgia logo deixará de interessar a ciência? Por volta de 1900, se já não se leva muito a sério a sua repercussão orgânica, há um campo em que o conceito de nostalgia ainda se mantém: é a psiquiatria. Quando um jovem montanhês definha na capital, ninguém se interroga sobre as causas morais de seu estado: examinam os seus pulmões e descobrem uma tuberculose. Mas, se ele põe fogo na oficina onde trabalha, ou tenta se suicidar, é preciso buscar uma motivação psicológica. No início do século XX, são sobretudo os estudos alemães ou suíços que analisam essas reações de adolescentes, cujo aspecto é muitas vezes o de um impulso ou de uma reação em curto-circuito; esforçam-se para estabelecer o peso de diversos fatores: o rigor da pressão externa, as taras psicológicas do sujeito (debilidade mental, epilepsia), as características específicas do meio original de que o sujeito está separado. Um exemplo notável desse tipo de pesquisa nos é oferecido pela tese de medicina de Karl Jaspers, Heimweh und Verbrechen [nostalgia e criminalidade]. O trabalho data de 1909.

A palavra “nostalgia” reaparecerá de novo, esporadicamente, na literatura psiquiátrica dedicada, depois de 1945, aos distúrbios psíquicos provocados pela vida nos campos de prisioneiros ou de refugiados. Tendo hoje se tornado infinitamente mais raro, o uso especializado da palavra “nostalgia” pisca e vacila: estejamos certos, amanhã estará extinto. Resta, é claro, o emprego desse termo pela língua “corrente”; seu valor primitivamente poético assumiu pouco a pouco uma conotação depreciativa: a palavra designa a inútil saudade de um mundo social ou de um modo de vida do passado, cujo desaparecimento é inútil deplorar.

Vários conceitos, em psiquiatria, se substituíram à noção de nostalgia. Correspondem, por um lado, a um esforço de análise mais avançada do comportamento dos nostálgicos. Por outro, modificam radicalmente a própria imagem da afecção designada. O tom se desloca. Não se fala mais de doença, mas de reação; não mais se sublinha o desejo de retorno, mas ao contrário a falta de adaptação. Quando se demonstra uma “reação depressiva de inadaptação social”, o nome conferido ao fenômeno deixa completamente de designar, como o fazia nostalgia, um lugar anterior, um local privilegiado: não mais se cogita a hipótese de uma cura pelo repatriamento. Ao contrário, insiste-se na falta de acomodação do indivíduo à sociedade nova na qual ele deve se integrar. A noção de nostalgia acentuava o meio original (o Heim); a noção de inadaptação acentua, imperativamente, a necessidade de inserção no meio atual, e a aptidão requerida para isso. Em muitos aspectos, essa transformação do conceito e da terminologia é indicativa de uma mudança que interveio na geografia social. A noção de nostalgia se desenvolveu na Europa no momento da expansão das grandes cidades; simultaneamente, vias de comunicação muito melhoradas tornavam mais fáceis os movimentos de população. Mas, na mesma época, a célula social da aldeia, as particularidades provincianas, os costumes locais, os dialetos ainda mantinham toda a sua importância. A distância diferencial era grande entre o meio aldeão e as condições que um adolescente encontrava na cidade grande e no Exército. O meio aldeão, fortemente estruturado, exercia um papel formativo. O desejo de retorno tinha, portanto, um sentido literal, estava orientado no espaço geográfico: visava uma “localidade” determinada. É evidente que o declínio da noção de nostalgia coincide com o declínio do particularismo provinciano: os rituais locais, as estruturas “atrasadas” praticamente desapareceram na Europa ocidental. A informação — o que se escuta e se vê seduz — é onipresente. O olhar para a aldeia natal não tem mais razão de ser um tormento, o retorno não tem mais nenhum efeito curativo.

Em muitos aspectos, no entanto, a “célula familiar”, com seu caráter protetor e fechado, conservou a função formadora e “particularizante” que tinha outrora a comunidade aldeã. Já no século XVIII o nosógrafo Boissier de Sauvages observava que a nostalgia se manifestava na criança e que, quando se tratava de filhos de ciganos em perpétua migração, essa afecção não resultava da privação de um lugar determinado: essas crianças sofriam por terem sido separadas dos pais. Constatações do mesmo tipo se multiplicam no século XX. Mas o termo de nostalgia, que marca fortemente o papel de um lugar, será suplantado, nos estudos de René Spitz ou de Bowlby, pelos termos mais adequados de “carência socioafetiva” ou de “patologia da separação”.

Como vimos, Kant já afirmava que o nostálgico deseja reencontrar menos o espetáculo da terra natal do que as sensações da própria infância. É na direção do seu passado pessoal que o nostálgico procura fazer o movimento do retorno: quando Freud desenvolver as noções de fixação e de regressão, apenas retomará, explicitará e precisará, numa nova terminologia técnica, a explicação sugerida por Kant. A palavra “regressão” implica, a seu modo, a ideia de retorno. Mas é dentro da sua própria história que o neurótico regressa. A aldeia está interiorizada.

O que de início fora definido como a relação com um lugar natal é, assim, redefinido nos nossos dias como relação com as figuras parentais e os estágios primitivos do desenvolvimento pessoal. Enquanto a nostalgia designava um espaço e uma paisagem concretos, as noções contemporâneas designam pessoas (ou suas imagens, ou ainda os seus substitutos simbólicos) e uma remanência subjetiva do passado vivido. Hoje, quando se acentua o imperativo da adaptação social, a nostalgia não mais designa uma pátria perdida, mas remonta a estágios em que o desejo não precisava levar em conta o obstáculo externo e não estava condenado a diferir a sua realização. Para o homem civilizado que não tem mais enraizamento, o que cria problema é o conflito entre as exigências da integração ao mundo adulto e a tentação de conservar os privilégios da situação infantil. A literatura do exílio, mais abundante que nunca, é, em sua grande maioria, uma literatura da infância perdida.

* “Ranz des vaches” (ranz, em dialeto alemânico: “fileira”; des vaches: das vacas) é uma cantiga pastoral suíça. (N. T.)
** Engraçado, alegre. (N. T.)


STAROBINSKI, Jean, A tinta da melancolia: uma história cultural da tristeza. Trad. de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

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