“Bizancio” – Wilson MARTINS

Suplemento Literário, ano VI, nº 302, outubro de 1962.

Suplemento Literário era uma publicação do jornal O Estado de S. Paulo, dirigida por Antônio Cândido e Décio de Almeida Prado, que circulou de outubro de 1956 a abril de 1976.

Wilson Martins (1921-2010) foi um professor, escritor, magistrado, jornalista, historiador e crítico literário brasileiro, autor da coleção monumental História da Inteligência Brasileira.

Escreveu também A ideia modernistaCrítica literária no Brasil e A palavra escrita, entre outros.


BIZANCIO

Wilson Martins

O excesso e a carencia de espirito crítico são igualmente fatais para uma literatura: em nosso tempo, um dos sinais mais inquietantes do fim de todas as artes é que. como já se tem repetidamente observado, a maneira de dizer importa mais do que aquilo que se diz (um personagem de Antonioni renovou, mais uma vez, a observação — e que o proprio cinema manifeste a mesma predileção pela atitude bizantina é a contraprova do que poderiamos chamar o preciosismo contemporaneo). Por outro lado, e num processo inevitavel de compensação, a astenia criadora, ao mesmo tempo em que substitui a invenção pelo escolio e o temperamento pelo artesanato, compraz-se nos balanços hastoriograficos e no estabelecimento de perspectivas: é a época por excelencia das historias da arte e da literatura, dos dicionários e das enciclopedias. Atualmente, o exemplo eminente dessas tendencias (que nenhum espirito lucido pode aceitar ou desejar como permanentes) é a vida intelectual francesa. À falta de literatura, escrevem-se as historias da literatura e, à falta de literatura contemporanea, instituiu-se um genero simultaneamente novo, contraditorio e absurdo: a historia da literatura contemporanea. O grande mestre desses balanços,  refletindo a paixão dos panoramas bem estruturados, um espirito critico de primeira ordem e um assombroso conhecimento da literatura que passa, é Pierre de Boisdeffre, que se especializou, por assim dizer, na historia da criação literaria “in fieri”.[1] Os titulos dos seus trabalhos são significativos e valem por um programa: Métamorphose de la littérature (1950), Histoire Vivante de la Littérature d’Aujourd’hui (1960), Où va le Roman? (1962)… Outro dos seus livros intitula-se Des Vivants et des Morts…, e já está anunciada a Anthologie Vivante de la Littérature d’Aujourd’hui, simetricaa à historia literaria e corresponde à coleção editorial que ele dirige e a que deu o nome igualmente tipico de uma inclinação de espirito: “clássicos do seculo 20”. É natural que seja tambem ele o diretor do Dictionnaire de Littérature Contemporaine[2] em que as leras vivas e os escritores do nosso tempo inscrevem-se sob esse primeiro signo da eternidade literária que é a ordem alfabetica: resta saber, de todos eles, os que realmente passarão do dicionário da literatura contemporanea para o dicionario ideal da literatura. Desse livro, já se escreveu, com bastante injustiça, que era uma torneira de que o mel e o fel  escorriam ao mesmo tempo; quanto à Histoire Vivante, tudo o que se achou de mais grave para dizer contra um estudo que, no seu genero, é admiravel, foi que o autor manifestava a mania invencivel das etiquetas e das classificações. Contudo, as classificações e as etiquetas são, mais do que marcos indicadores da topografia estética, a propria substancia da verdadeira historiografia, na medida mesmo em que a historia literaria não é a narrativa morta e mortal dos nomes e das datas, mas uma tentativa sempre nova e pessoal de interpretação.

Do Dictionnaire de Littérature Contemporaine, o que realmente se pode afirmar, creio eu, é que não tem do dicionário senão a ordem alfabética: esse livro ambicioso deseja ser, numa só leitura, uma enciclopédia, um panorama critico, um manual de literatura e um balanço, tanto quanto possivel definitivo, de uma literatura que ainda não é. nem pode ser, definitiva. Esse trabalho coletivo, avalisado por nomes da importancia e significação de R. M. Albèrés (outro grande especialista da “literatura viva” e dos admiraveis panoramas de conjunto), de Manuel de Diéguez, de Pierre-Henri Simon e de Alain Robbe-Grillet, entre numerosos outros, “esforça-se por responder a dois objetivos complementares: apresentar com tanta exatidão, senso critico e precisão quanto o seu quadro o permita, mais de uma centena de obras e de autores, nuns esforço de dar uma vista de conjunto da literatura que se está fazendo; marcar-lhe as grandes perspectivas, sem fechar em coordenadas demasiadamente. rigorosas obras e homens que nem sempre puderam encontrar, ate agora, o seu caminho. (…) Informar e criticar, informar antes de criticar, tal foi nosso duplo objetivo. Este trabalho foi decomposto em duas partes. A primeira oferece ao leitor grandes sínteses em que se tentou esclarecer os principais genros literarios, examinados em função de sua evolução no ultimo meio seculo. A segunda situa cerra de 130 escritores de hoje, a que se reserva uma ficha crítica que vai, segundo a importancia da abra, de algumas dezenas de linhas a uma dezena de paginas”. Não me parece criticamente correto discutir nem o criterio de inclusões e exclusões, nem a importancia numérica das linhas reservadas a tais ou tais escritores: reservas dessa natureza deixam de ter sentido na medida em que um dicionario ou uma historia literaria só assumem qualquer validade critica justamente por representarem uma posição espiritual e um julgamento. Assim coma no caso das “etiquetas” e das “classificações”, Pierre de Boisdeffre poderia responder que não se faz uma enciclopedia da arte com espirito absolutamente neutro (na suposição de que tal espirito, se existir ou se existisse, pudesse interessar quem quer que fosse); além disso, o que o leitor procura numa obra desse tipo não é o estabelecimento das suas próprias perspectivas de julgamento e apreciação,  mas as perspectivas contrastantes e enriquecedoras de inteligências diferentes e de outras posições intelectuais.

Assim, o que realmente se pode censurar este livro é, por paradoxo, a sua indecisão entre a objetividade que o titulo promete e as tendencias partidarias a que sucumbe em numerosos verbetes. Os panoramas da primeira parte, diga-se desde logo, estão acima dessa restrição: eles situam, com tanta clareza e argucia quanto se poderia exigir, as linhas de forca da Literatura Francesa nos últimos sessenta anos. Mas, na parte propriamente dicionarizada, isto é, nos verbetes de autores, o Dictionnaire oscila entre a noticia enciclopédica e a apologia; entre um grafico da literatura contemporânea e ostentação, muitas vezes gratuita e deslocada, da critica “de desafio”, tão popular em Saint-Germain des Près nos tempos já historicos do Existencialismo. Alguns dos colaboradores e, em particular, Paul Vandromme, encaram a critica como polemica; outros, como G. Mourgue, encaram-na como sustentáculo de um tipo de literatura que, no mundo contemporaneo, poderia ser definida como “a vanguarda da Direita”. Realmente, numa sociedade em que a maioria aceitou, de bom ou de mau grado, os postulados essenciais da Esquerda, a oposição, com tudo o que possa ter de heróico, de romantico e de compensatorio, tornou-se o privilegio da Direita: os revolucionarios da Literatura mudaram surpreendentemente de ala e toda a “aliteratura contemporanea” (para lembrar o titulo de Claude Mauriac[3]) é, no fundo, a reação direitista e bizantina a comunidades que se querem comprometidas e socializantes. Num paradoxo apenas aparente, é essa Direita ao mesmo tempo agressiva, reivindicatória e evasiva que dá o “tom”, nos dias que correm, à literatura de vanguarda: se, na historia da civilização, Bizancio era una ilha isolada e alienada num mundo que desmoronava, chegamos, agora, à perfeição de instalar um mundo bizantino no próprio centro de uma época que se desintegra. Desse ponto de vista, o verbe central do Dictionnaire de Littérature Contemporaine seria o que Manuel de Diéguez escreveu a propósito de E. M. Cioran: imagina-se um Dácio romanizado das provincias de leste, rejeitado pelo refluxo do Imperio, até a Roma ainda insolente e luxuosa; imagine-se esse Dácio ruminando sob os tetos a fatalidade do desastre numa língua amarga e suntuosa: imagine-se-o recusando as auroras ilusorias e os fervores bárbaros do futuro como o falso brilho e as ultimas orgias da grandeza romana, como um Juvenal do apocalipse; imaginem-se era seguida os finos letrados reservando a melhor acolhida a esse profeta do abismo e às suas cóleras majestosas, julgando que escreve muito bem e que honra as belas-letras com o seu talento capitoso. Ter-se-á assim uma ideia da refração, no espírito literário parisiense, da obra de E. M. Cioran: reduzindo toda a certeza, todo o tragico, toda a verdade à literatura, ignoramos o drama profundo desse Rumeno que nos assiste morrer enquanto avaliamos, como entendidos, as suas cadencias…”. É apenas nessas linhas que o Dictionnaire manifesta consciencia do verdadeiro problema da Literatura em nossos dias: que a poesia, nestes últimos vinte anos, não haja estendido as suas fronteiras (pag. 100); que o maior poeta francês contemporaneo, como se diz (Saint-John Perse), “não evite o excesso decorativo nem a frieza erudita” (pag. 566); que o grande seculo do romance tenha sido o que vai da estreia de Stendhal, de Dickens e de Balzac aos triunfos de Zola, de Tolstoi e de Maupauant (pag. 25); que a critica haja completamente perdido de vista a literatura para se preocupar com a psicologia individual dos escritores ou com a sua virtuosidade técnica, são problemas secundários, nos dois sentidos da palavra. Realmente, essa decadencia inegavel é apenas um problema menor diante do que se relaciona com a propria significação que a Literatura ainda possa ter em nossos dias; por outro lado, ela vens em segundo lugar, resultando, como resulta, do que o proprio Boisdeffre poderia chamar, nuns trocadilho amargo, a metamorfose da civilização.

Se a literatura contemporanea é a literatura da decomposição e não a literatura da composição. a estética de Cioran encontrar-se-ia, realmente. no centro de tudo o que, de perto ou de longe, possa referir-se às artes da palavra; é significativo, é psicanalítico, que, ao apresentar o seu Dictionnaire, Pierre de Boisdeffre haja escrito, não que se compunha de duas partes, mas que se decompunha em duas partes. Assim, as artes de literatura, como as visuais e auditivas, refletiriam a desagregação do mundo e seriam a tentativa de expressão de um universo sem sentido. Os autores exemplares seriam, então, Ionesco e Beckett: ao automatismo da linguagem corrente, corresponderia a falta de sentido essencial de toda linguagem (e à falta de sentido da propria existencia do homem sobre a terra, na medida em que ela pode ser tida como uma forma particular de linguagem, isto é, de expressão espiritual). Deixemos de lado o problema imediato e que se encontra realmente ao alcance de qualquer inteligencia: a “literatura” de Beckett e de Ionesco, tomando-a como simbolo das grandes tendencias literarias de vanguarda, dificilmente poderá ser aceita como literatura e, na realidade, deseja ser expressamente a sua negação sardônica e implacavel. A literatura do nosso tempo é antiliteraria. Mas, se é essa a filosofia de Beckett e de todos os que, de uma forma ou de outra, pertencem à mesma corrente, por que continuar escrevendo? A pergunta é de Lucien Guissard, critico catolico, sacerdote assuncionista (há, atualmente, muitos “padres-operarios” na critica literaria), em quem se compreende que a sensibilidade a tal aspecto da questão seja particularmente viva. O que irrita, em Comment c’est, continue ele, “afora os preconceitos de expressão, é a contradição que explode entre a cruciação verbal e a única atitude logica, o silencio. Repetem-nos que escrever é impossível, mas continua-se a falar” (cit. pag. 183). Entretanto, outro critico catolico, Claude Mauriac, escreveu todo um livro de simpatia sobre a “aliteratura contemporanea”:  a propósito do mesmo Beckett, “aliterario exemplar”, ele observa, que, “por meio de uma literatura que, terminando por negar toda a literatura, se nulifica na catástrofe que suscitou”, o autor de Malone morre “abre em nós proprios uma porta que, mesmo depois de Joyce, seu mestre, e Kafka, seu irmão mais velho, talvez continuasse condenada”.

A verdade é que, no romance, na poesia e no teatro — os três gêneros-testemunho de toda criação literária ocidental — a literatura reduziu-se, nestes ultimos anos, a uma atividade de mandarins (o romance dessa geração será, com certeza, a obra admirável de Simone de Beauvoir que, com esse nome, definiu, mesmo sem querer, toda uma época). É fácil dizer que a mesma coisa aconteceu em todos os seculos e que todos os grandes artistas foram considerados incompreensiveis no seu tempo: além de a observação estar longe de ser verdadeira, acontece que, em nossos dias, é o artesanato e não a arte o criterio de julgamento, se não adotado, menos preconizado pelos autores representativos. Numa pagina bastante contraditoria, e que diz mais, contra o “novo romance”, do que os seus mis criticos menos tolerantes, Alain Robbe-Grillet termina por negar, afinal, todo sentido humano ao genero que, acima de qualquer outro, poderia pretender à condição de forma literaria privilegiada do homem moderno: “Crer que o romancista ‘tem qualquer coisa a dizer’ e que em seguida, procura o modo de dizê-la, representa o mais grave dos contra-sensos. Porque é precisamente o ‘como’, essa maneira de dizer, que constitui o seu projeto de escritor, projeto obscuro entre todos, e que, mais tarde, será o conteudo duvidoso do seu livro…”. Nesse “romance sem personagens”, continua, entretanto, Robbe-Grillet, “o homem está presente em cada pagina, em cada linha, em cada palavra. Mesmo quando nele encontramos muitos ‘objetos’, e descritos com minúcia, existe sempre e antes de mais nada, o olhar que os vê, o pensamento que os revê, a paixão que os deforma. Os objetos dos nossos romances jamais têm qualquer presença fora das percepções humanas, reais ou imaginarias: são objetos comparaveis aos da nossa vida cotidiana, tais como ocupam o nosso espírito em todos os momentos…”. Robbe-Grillet, como, em geral, todos os partidários da “aliteratura”, revelou-se, até agora, melhor advogado e teorico de uma corrente artistica que um espirito verdadeiramente criador; mesmo no cinema, em que a contribuição da imagem exerce, quer se queira ou não, um papel esclarecedor de possibilidades infinitas, não se pode dizer que as suas obras estejam à altura das ambições, nem mesmo das intenções. De uma forma geral, toda a “aliteratura” só representa alguma coisa de novo e, talvez, de permanente, na proporção exata em que faz concessões à literatura, situação tanto mais compreensível e natural quanto a inteligência não pode realmente manifestar as suas virtualidades no momento mesmo em que as nega. Em qualquer das artes, mas particularmente artes da palavra, estamos diante de intelectuais que dizem de maneira complicada as coisas simples, quando, ao contrario, a historia espiritual só alcançou os domínios reservados da grande criação quando surgiram os homens capazes de dizer simplesmente as coisas complexas. Nessa inversão de processos se encontra toda a explicação de um mundo em que a pretensão dos artistas só se compara ao seu malogro essencial: o problema consiste em saber de que maneira os artistas saberão fugir da Bizancio em que se fecharam para as aventuras desconhecidas de qualquer Renascença.


NOTAS:

[1] Expressão latina que significa “em desenvolvimento”, em “processo de construção”.

[2] Éditions Universitaires, Paris, 1962.

[3] MAURIAC, Claude, L’Alittérature contemporaine. Paris: Albin Michel, 1958.


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