A NOSSA DEFINIÇÃO CLÁSSICA daquilo que o sublime literário reivindica pode ser encontrada nas sentenças iniciais de The romantic sublime O sublime romântico de Thomas Weiskel:
A alegação essencial do sublime é que o homem pode, no sentimento e na linguagem, transcender o humano. O que se encontra além do humano, se é que algo se encontra além — Deus ou os deuses, o demônio ou a Natureza —, é objeto de grande divergência. O que define a esfera do humano, se algo é capaz de fazê-lo, provavelmente não é menos indisputável.
Algumas sentenças mais adiante, Weiskel conclui o primeiro parágrafo de seu livro com um sutil aforismo: “Um sublime humanístico é um oxímoro”. O poder de Weiskel como um teórico do sublime está condensado em sua implicação de que o sublime hebraico ou cristão, o homérico, o demoníaco, o natural — todos escapam à condição oximorônica. Também podem escapar à definição precisa e, na verdade, podem confundir-se uns com os outros, mas nenhum deles é tão problemático e paradoxal quanto aquela aparente contradição — um sublime humanístico. Os poetas do sublime que de modo crucial são humanísticos em alguns aspectos — Milton, Blake, Wordsworth, Shelley, Keats, Whitman, Stevens — precisam renunciar ao sublime quando põem em primeiro plano preocupações humanísticas.
Como crítico, Weiskel estava, em última análise, antes na tradição de Longino do que na de Aristóteles, o que vale dizer que Weiskel não era um formalista, mas era, ele próprio, um crítico sublime. A transcendência do humano na linguagem, em particular na enunciação dentro de uma tradição de enunciação que é a poesia, necessariamente depende do tropo da hipérbole, um derrubamento (ou uma superação, ou um exceder-se) que está mais próximo da simplificação pela intensidade do que do exagero. A transcendência do humano no sentimento é uma experiência (ou ilusão) universal, e ela própria transcende a maior parte dos modos de enunciação. Shakespeare é peculiarmente bem-sucedido ao representar o sublime do sentimento, como no magnífico lamento de Cleópatra por Antônio:
A coroa da terra se derrete. Meu senhor!
Oh, a grinalda da guerra está murcha,
E a lança do soldado tombada! Rapazes e moças
Ora se acham junto dos homens; foram-se os seres singulares,
E nada resta de notável
Sob a lua que nos visita.1
A lança do soldado serve de padrão de medida, e, como está tombada, toda distinção, toda diferença (“os seres singulares”) desapareceu. Cleópatra habilmente lamenta que o sublime se foi com Antônio, enquanto fala admiravelmente em acentos sublimes, e isso nos informa que ela é tudo que restou do sublime. O que determina a presença ou ausência do sublime é o padrão de medida, no início as ideias platônicas, mas depois aperfeiçoado por Platão até um conhecimento pragmático capaz de responder às perguntas: Mais que? Igual a? Menos que? Estou seguindo a leitura heideggeriana que Hannah Arendt faz de A república no seu ensaio sobre a autoridade em Between past and future [Entre o passado e o futuro]. Cleópatra lamenta de modo sublime e elegíaco a morte do sublime, pois tudo que resta é menos que Antônio perdido. O que Cleópatra sabe é que o sublime é agonístico, conhecimento crucial aos teóricos do sublime desde Longino até Weiskel.
Angus Fletcher, que me parece o autêntico precursor de Weiskel na minha geração de críticos, salientou em seu livro fecundo Allegory (1964) que “o sublime parece proporcionar ao poeta uma cosmologia”. Tomando como seu o desejo longiniano de nos libertar do jugo do prazer, ou do simples tédio, Fletcher seguiu a longiniana Defence of poetry de Shelley ao enfatizar que a função do sublime era trabalhar, por via do “difícil ornamento” e das ambivalências intensificadas, a fim de nos fazer tomar parte de seu agon, sua batalha sem fim contra o superficial. The romantic sublime, de Weiskel, assim como a Allegory de Fletcher, compartilha o profundo desígnio de Longino e Shelley sobre nós. Temos de nos persuadir a renunciar aos prazeres mais fáceis em favor dos mais difíceis, ou, como o exprime Weiskel, temos de nos deslocar do sublime egotista ao sublime negativo:
O sublime egotista culmina numa ambivalência intensa. A memória e o desejo pregam uma partida: eles nos levam a um seio aceitável, porém o preço da regressão e a solidão ou desamparo implícitos no seu objeto fizeram desse objeto uma coisa odiada. Nos termos do que Freud chamou de romance familiar, a identidade é considerada com toda a ambivalência não resolvida de uma crise edípica em que não existe, estranhamente, nenhum pai simbólico que venha dar resgate. No entanto, não podemos deixar de notar que a estrutura do sublime egotista se encerra precisamente no ponto da ambivalência em que encontramos o início do sublime negativo.
Todos os teóricos do sublime deparam com certas obras-primas da ambivalência emocional: a luta edípica, o tabu e a transferência se encontram entre elas. Os sentimentos iguais e contrários, as forças antitéticas que são irmãos ou irmãs inimigos, parecem ser a base emotiva para o sublime. Entretanto, a ambivalência ampliada demais torna-se ironia, a qual destrói o sublime. Com aguda consciência desse perigo, Weiskel procurou defender-se dele mediante o exemplo de Wallace Stevens, que, em um dos seus aspectos ou fases perpétuas, é uma última versão forte do sublime egotista de Wordsworth e de Walt Whitman. Como estrutura regressiva, o sublime de Stevens se recusa a crescer, mas, de qualquer modo, o que significa crescimento num poema, e para um poema, senão a perda do poder? Weiskel, como crítico sublime, em vez de simples moralista, firmou seu compromisso de fidelidade de modo claro e comovente: “Os poetas, contudo, estão à altura de tais riscos, quanto aos quais eles não têm, em todo caso, escolha alguma. Não é na assunção dos riscos espirituais que o romântico egotista paga pela hybris de sua sublimação. Nenhuma coisa é obtida gratuitamente. O preço está lá, e é pago no texto, não na circunstância extrínseca”.
Neil Hertz, trabalhando à maneira desconstrutiva da retórica conceitual de Paul de Man, e também influenciado pelas revisões de Freud realizadas pelas feministas francesas, em The end of the line [O fim da linha], concedia crédito a Weiskel por insistir intensamente nas ansiedades do sublime pré-edípico ou maternal, mas o criticava pelo “alívio que, como intérprete, parece ter experimentado ao, finalmente, imputar tudo ao Pai”. Hertz, na minha opinião: opta por esquecer que o sublime ocorre entre a origem e o objetivo ou fim, e que o único tropo ocidental que elude tanto origem como fim é o tropo do Pai, o que equivale apenas a dizer que não falamos de “Pai Natureza”. Na verdade, Weiskel está mais próximo de Freud do que o estão Lacan ou Derrida, porque ele não interpreta seu Freud através de Heidegger.
Em todo o The romantic sublime, Weiskel trabalha com vista a um difícil tipo de crítica literária, a um só tempo moral ou primária e desidealizadora ou antitética. Talvez não seja possível alcançar isso; no que me toca, com certeza não consegui alcançá-la. Na crítica a respeito de Wordsworth, esse procedimento reconciliaria Matthew Arnold e A. C. Bradley, M. H. Abrams e Geoffrey Hartman. Talvez Wordsworth, como poeta da natureza e poeta do sublime, possa conciliar críticos tão divergentes, porém eles devem necessariamente fracassar em conciliar-se uns com os outros. Mas a tentativa de Weiskel é, em si mesma, sublime; ela exige a renúncia aos prazeres mais fáceis em favor dos mais difíceis, e talvez demarque sempre um dos limites da crítica do século XX sobre os poetas do alto romantismo. Imensamente estimulado que sou por todo o estudo de Weiskel, sinto-me mais instigado à meditação por sua audaciosa tentativa de definir a imaginação wordsworthiana:
O que, pois, é este “Poder terrível” a que Wordsworth chama “Imaginação”? Na última versão [de O prelúdio], Wordsworth nos dirá que o poder é “assim chamado/ Pela triste incompetência da linguagem humana” (6.592-3), mas, é óbvio, o nome está inteiramente correto, pois o poder da visão cresce em intensidade desde a memória, mediante a ênfase, até a oclusão do visível. A Imaginação pode ser estruturalmente definida como um poder de resistência ao Verbo, e, nesse sentido, ela coincide exatamente com a necessidade psicológica de originalidade. Porém, uma definição estrutural apenas localiza uma experiência; como uma experiência ou um momento, a Imaginação é uma extrema consciência do ser a tomar vulto no recuo dialético em face da extinção do ser, imposta por uma iminente identificação com a ordem simbólica. Daí a Imaginação elevar-se “qual emanação bastarda”: ela é, a um só tempo, a necessidade do ego e sua tentativa de ser bastardo, de originar-se a si próprio e, desse modo, negar o reconhecimento a um poder superior. A imaginação não é uma evasão do complexo de Édipo, mas uma rejeição dele. De certo ponto de vista (aquele, por exemplo, implicado pela história da influência poética), essa rejeição é puramente ilusória, uma ficção. Rejeitar o complexo de Édipo não é, afinal de contas, dissipá-lo. Mas a ficção é necessária e redentora; ela fundamenta o ser e garante a possibilidade — a oportunidade para uma certeza de si mesmo — da originalidade. E, assim, Wordsworth pode dirigir-se à sua “alma consciente” (1850) e dizer: “Reconheço tua glória”.
Uma ficção necessária e redentora é tanto um tropo stevensoniano como também um retorno à aspiração que o próprio Weiskel tinha de estabelecer uma estrutura e uma psicologia para a transcendência. A esperança, como em Emerson e Stevens, é uma modificação bem americana do ethos protestante europeu, e Weiskel toma seu legítimo lugar nessa tradição, ao mesmo tempo escolhendo-a e sendo escolhido por ela. A tradição fora antes modificada, pelo Iluminismo europeu, por meio de uma transformação, na verdade, uma redução redentora, da transcendência naquele modo denominado a sensibilidade ou o sentimental.
O sentimental, não como uma exaltação vitoriana da moralidade de classe média, nem como uma celebração moderna da simplicidade natural do proletariado, é um modo crucial do pensamento e da emoção em meados e no final do século XVIII. Martin Price, um dos seus principais expositores, chama-o de “uma reivindicação veemente, por vezes desafiadora, do valor dos sentimentos do homem”. Essa manifestação consciente de si própria, explicitamente dramática, sincera a despeito de suas implicações teatrais, foi considerada como demonstração de um espírito receptivo, compassivo e humanitário, e então denominada “sensibilidade”. Seu grande exemplar foi Rousseau; e seu principal representante britânico, o insólito romancista Laurence Sterne.
Numa fusão complexa, a paixão pelo estilo sublime, agonístico e transcendental, foi capaz de se reconciliar com a reatividade mais branda da sensibilidade. Essa fusão anima os poetas Young, Thomson, Gray, Collins, Smart e Cowper, e figura também nas imposturas arcaicas de Macpherson como Ossian, e de Chatterton como Rowley. Em Robert Burns e no Blake inicial, a união instável da sensibilidade e do sublime ajudou a estimular os únicos poetas do século XVIII capazes de rivalizar com Dryden e Pope. A aura dos poetas da sensibilidade e do sublime desde então permeou a poesia anglo-americana, em parte através de seus descendentes românticos, em parte devido a uma curiosa modernidade que apreendemos no arriscado equilíbrio e nos destinos com frequência catastróficos desses poetas ávidos de perdição. O magnífico poema lírico “The castaway” [“O náufrago”] de William Cowper se encerra com o motto perfeito para a poesia da sensibilidade e do sublime, uma poesia limítrofe que teme, ainda que corteje, a loucura:
Nenhuma voz divina abrandou a tormenta,
Nem brilhou qualquer luz propícia,
Quando, arrancados a todo eficaz amparo,
Nós perecemos, cada qual a sós:
Mas eu submerso em um mar mais crespo,
Em abismos mais profundos do que os dele.2
Blake, que não temia nem cobiçava a loucura, tornou da sensibilidade à transcendência, mas a um preço que parecemos relutar em compreender.
Como um vitalista heroico, Blake deita fora todos os dualismos; como um visionário apocalíptico, em certos aspectos parece um tipo de gnóstico, e o gnosticismo é o modo mais dualista da crença já defendido na tradição ocidental. O Blake de Northrop Frye transcende imaginativamente a ficção cindida apresentada por um monismo e um dualismo simultâneos, e consegue escapar às consequências de inumeráveis contradições na postura e no argumento mediante procedimento similar, quase como se Blake fosse Hegel, porém crucificado, por assim dizer, de cabeça para baixo. Fearful symmetry [Terrível simetria], em minha opinião, continua a ser a melhor obra de Frye, em vez de Anatomy of criticism [Anatomia da crítica] ou The great code [O grande código], mas, como um comentário sobre Blake, ele me parece uma bela idealização da qual não posso mais participar. Apenas dois livros importavam verdadeiramente a Blake, como observou Frye: a Bíblia e Milton. A Bíblia de Blake é indistinguível do Great code blakiano de Frye, e hoje repudio meu empenho juvenil em judaizar William Blake num livro chamado Blake’s apocalypse [O apocalipse de Blake] e numa obra anterior, The visionary company [A companhia visionária]. A Bíblia hebraica é cancelada, e não consumada, na mitologia cristã de Blake e de Frye. E, da mesma forma, Milton também é cancelado, e não consumado, em Milton: a poem in two books [Milton: um poema em dois cantos], de Blake. Tal é o procedimento normal dos poetas fortes, e a crítica nos faz um desserviço quando idealiza a relação entre a Bíblia e Blake, ou entre a Bíblia e Milton. A figura de Milton em Blake é apenas isto, um tropo, uma tentativa figurativa de translado, e hoje eu diria uma tentativa fracassada, embora um belo fracasso.
Se somos monistas, sobretudo de uma espécie de vitalistas heroicos, então necessitamos de uma psicologia da vontade e não de uma psicologia profunda do tipo que parte de Platão, passando por Montaigne, para culminar por fim em Sigmund Freud. A psicologia profunda é um modo dualista, consoante com uma retórica e com uma cosmologia dualistas. Nunca devemos nos esquecer que a psicologia, a retórica e a cosmologia são três nomes de uma única entidade. Blake confunde, e, em última análise, é ricamente confuso, pois sua psicologia pessoal é sempre dualista, apesar de seus desejos, ao passo que sua retórica e sua cosmologia manifestam uma cisão que oscila entre as visões monista e dualista. De maneira mais simples, Blake rejeita a natureza e o homem natural, de um modo veementemente gnóstico, enquanto afirma simultaneamente a postura oximorônica daquilo que certa vez denominei um humanismo apocalíptico. Eu não mais o chamaria assim, e dou comigo a desejar que Blake tivesse sido capaz de perceber que lhe faltava uma verdadeira psicologia da vontade poética, a despeito de suas incessantes tentativas de mitificar tal psicologia. A vontade nietzschiana da vingança contra o tempo, e contra o “Era” do tempo, é também a vontade de Blake, porém ele iludiu a si próprio numa visão muito diversa. Embora sua profecia fosse negativa e apocalíptica, ele a deturpou como sendo a postura de Isaías e de Milton, nenhum dos quais abriria mão da história em favor do Acusador.
Blake gravou as chapas de metal de sua breve epopeia Milton em 1809 e 1810, mas o poema parece ter sido escrito de 1800 a 1803, ainda que tenha sido substancialmente revisado até ser gravado. Isso o torna quase contemporâneo ao Prelúdio em duas partes de Wordsworth, datado de 1799, seu grande rival, no alto romantismo, no translado da epopeia miltoniana. Assim como o Paradise regained [Paraíso reconquistado], a obra de Blake tinha como modelo temático o Livro de Jó; a audaciosa originalidade de Blake advém de sua representação de John Milton como herói épico. Como o Prelúdio de 1799, o Milton de Blake pode ser considerado um poema lírico de crise prolongada, pois uma internalização do sublime agonístico é fundamental em ambos os poemas, com John Milton como força procriadora e como o outro agonístico. Lembro-me de escrever certa vez que a ousadia de Blake não é emulada em parte alguma da poesia moderna, a qual não nos concede obras tais como, digamos, Browning: a poem in two books escrito por Ezra Pound, ou Eliot agonistes por Robert Lowell. Eu teria prazer em ler uma epopeia breve inteiramente centralizada em Auden ou Stevens, escrita por James Merrill, ou um longo monólogo dramático dito por Whitman ou Stevens, composto por John Ashbery. Merrill flertou com tal modo em partes de The changing light at Sandover [A luz cambiante em Sandover], enquanto Ashbery fantasmagoricamente se abeira de tais momentos em Litany [Litania] e A wave [Uma vaga]. Blake permanece único entre os poetas mais fortes do pós-Iluminismo ao levar até o fim muitas das implicações de semelhante aventura.
Quero refletir de modo mais abrangente sobre uma dessas implicações. É possível “corrigir” um poeta precursor sem o caricaturar ferozmente? Há de fato algum sentido em que um grande poema pode consumar ou completar um poema da mesma eminência escrito por outro poeta anterior? Não conheço problema mais essencial do que esse em todo o controvertido campo da poesia e da crença, pois uma resposta, se a pudéssemos encontrar, poderia definir para sempre o que Andrew Marvell, em seu poema sobre o Paraíso perdido, entende por “colocar sob suspeita” a intenção do argumento de Milton, uma suspeita que leva a um suposto medo de que ele “fosse pôr abaixo (pois seu poder bastava a tanto) / As verdades sagradas para a Lenda e o Antigo Canto”.
Todos os poetas fortes, seja Dante, Milton ou Blake, têm de pôr abaixo as verdades sagradas para a lenda e o antigo canto, precisamente porque a condição essencial para a força poética é que o novo canto, o da própria pessoa, sempre deve revelar-se o canto do ser de alguém, quer se chame a Divina comédia, o Paraíso perdido, ou Milton: um poema em dois cantos. Toda verdade sagrada que não pertence à própria pessoa torna-se uma lenda, um antigo canto que requer uma revisão corretiva. Dante completa e consuma Virgílio; Milton translada a todos, inclusive ao Javista; e Blake também reescreve Milton e a Bíblia, de forma a torná-los comentários sobre a sua própria Bíblia do Inferno. Certa vez pensei que tais caricaturas sublimes, feitas de precursores, fossem os produtos de um tipo de repressão poética, pois a repressão é, afinal de contas, uma forma de idealização — embora Freud insistisse nesse assunto de maneira contrária, com a repressão sempre tendo precedência, de modo que toda idealização dependesse da repressão.
Mas existem outros impulsos em nós além de Eros e Tânatos, o que suponho seja a razão de ansiarmos pela poesia, quer tenhamos ou não consciência disso. Há também a vontade de que o próprio nome não se disperse, para adotar a linguagem do escritor J. A vontade do poeta forte não é idêntica seja à vontade de viver seja à vontade de morrer. A imortalidade poética não é um tropo para o medo da morte nem para a bênção de mais vida, e pelo menos uma vez Freud admitiu algo assim. Não estou sugerindo que o impulso poético deva ter o mesmo status cognitivo em Freud que Eros e Tânatos. Em vez disso, a vontade poética de imortalidade, ou a ânsia pela prioridade, mostra que os dois impulsos freudianos são eles mesmos tropos defensivos, ou o que Freud chamava de superstições. Freud achava que a ambição pela imortalidade era mais uma superstição, mas a mim me parece que ela é mais primitiva do que isso, e tem prioridade sobre todos os tipos de crença. Na visão de Freud, somente um pequeno número de eleitos entre nós não eram neuróticos obsessivos, a recalcar impulsos assassinos contra nossos entes queridos. Só uns poucos conseguiam libertar o pensamento deles de seu passado sexual, e alcançar assim a superstição superior do próprio Freud, que asseverava que “A minha própria superstição tem suas raízes na ambição reprimida (imortalidade) e, no meu caso, ocupa o lugar dessa ansiedade acerca da morte que procede das habituais incertezas da vida”.
Essa sentença freudiana seria um magnífico comentário sobre o Lycidas de Milton, ou sobre o Milton de Blake. Blake idealiza sua ambição mais do que faz Milton em Lycidas e nas invocações do Paraíso perdido, e, decerto, mais do que Freud. O impulso imaginativo ou a vontade poética do Milton de Blake é essencialmente autobiográfico, na medida em que Blake representa a si mesmo como seu próprio Jó, sobrepujando um Satã puramente pessoal ao seguir o exemplo não do Milton histórico, mas de seu próprio Milton, o que significa dizer de seu próprio senso de vocação poética. O Milton de Blake se ergue do céu de sua própria visão, onde se encontra infeliz, e resolve descer. Ele está bem enfarado com um céu carente de imaginação, em que ele não tem absolutamente nada a fazer exceto perambular “ponderando os meandros intricados da Providência”, numa malcriada paródia blakiana dos Anjos Decaídos no Paraíso perdido. Portanto, o Milton de Blake “despiu-se do manto da promessa & descingiu-se do juramento a Deus”, tornando-se um antinomiano, e abandonando inteiramente o calvinismo de uma vez por todas. “Para reivindicar os Infernos, minhas Fornalhas”, diz este Milton, “lanço-me à Morte Eterna”, o que significa que, como Christopher Smart em Jubilate Agno, esse bardo verá “a fornalha aparecer por fim” em nossa vida generativa, duramente chamada de morte eterna pela assembleia plangente que Milton deixa atrás de si nos céus. A descida de Milton através da sombra dos ciclos da história se parece com a queda de seu próprio Satã, um cometa ou uma estrela a seguir para fora e para baixo. Blake contempla o alto e nos narra o que vê, ou o que quer ver:
Então primeiro o vi no Zênite qual uma estrela cadente
Descendo perpendicular, ligeiro como a andorinha ou o andorinhão
E, em meu pé esquerdo, caindo sobre o tarso, lá entrou;
Mas do meu pé esquerdo negra nuvem excessiva espalhou-se
[ pela Europa…3
O mais antigo, Milton foi o Lúcifer de Blake, um Satã antes da Queda mas no ato de descer, pois o precursor tem de cair se o bardo tardio deve experimentar em si mesmo a encarnação do caráter poético. O tarso (o osso em que ele pousa) alude a Saulo de Tarso, prostrado por uma grande luz na estrada para Damasco, justo como Blake aqui é fulminado pela súbita iluminação perpendicular da verdade da queda de Milton em nosso universo de morte. Foster Damon equiparou essa nuvem negra e excessiva, espalhada sobre a Europa, ao puritanismo, porém ela é mais precisamente a sombra de Milton, ou a influência miltônica sobre os poetas que lhe sucederam. Blake quer a iluminação em vez da sombra, de sorte que seu tornozelo, o tropo da postura poética, será emblemático da transformação poética, da de Saulo em Paulo. Assim, numa revisão de seu próprio tropo, Blake aventa, pois, uma ousada identificação com Milton, como se os dois verdadeiramente pudessem se tornar um único poeta:
Mas Milton penetrando meu Pé; eu vi nas ínferas
Regiões da Imaginação; também todos os homens na Terra,
E todos no Céu, vi-os nas ínferas regiões da Imaginação
Em Ulro sob Beulah, a vasta abertura da descida de Milton.
Porém ignorava que fosse Milton, pois homem algum pode saber
O que lhe atravessa os membros, até que períodos de Espaço &
[Tempo
Revelem os segredos da Eternidade: pois mais extensos do que
Quaisquer coisas terrenas são os lineamentos terrenos do Homem.
E todo este Mundo Vegetal surgiu em meu Pé esquerdo,
Como uma brilhante sandália imortal de pedras preciosas & ouro:
Inclinei-me & amarrei-a para seguir adiante, através da Eter-
[nidade.4
Interpreto isso tanto como um espantoso tributo à visão monista de Milton quanto à sua influência benéfica sobre Blake e sua poesia, quanto como uma autorrevelação involuntária da parte do poeta Blake, uma confissão de sua incapacidade de levar a cabo o vitalismo heroico de seu precursor teomórfico. O que Blake em geral chama com desdém de “este Mundo Vegetal” ora aparece em seu pé como uma sandália feita de “pedras preciosas & ouro”. Essa visão redimida, ou monista, da natureza, decorre de “Milton penetrando meu Pé”, mesmo que Blake tenha cuidado em asseverar que sua própria vontade poética tem de escolher aceitar a dádiva: “Inclinei-me & amarrei-a para seguir adiante, através da Eternidade”. O Milton de Blake, no final de Milton, profere uma grande declaração em que a imagística da remoção das vestes falsas, que perpassa todo o poema, alcança uma apoteose:
Para purificar a Face do meu Espírito por meio da Introspecção,
Para banhar nas Águas da Vida; para lavar o Não Humano,
Eu venho no Autoaniquilamento & na grandeza da Inspiração,
Para expulsar a Demonstração Racional por meio da Fé no
[Salvador
Para expulsar os pútridos andrajos da Memória por meio da
[Inspiração,
Para expulsar Bacon, Locke & Newton do abrigo de Albion
Para despir suas vestes imundas & vesti-lo com a Imaginação
Para afastar da Poesia tudo o que não seja Inspiração […]5
Eis aí, com efeito, o ponto crucial: por que deveria a memória que Blake tem da poesia de Milton ser a dos “pútridos andrajos da Memória”, e alguém seria capaz de “afastar da Poesia tudo o que não seja Inspiração”? A memória não é apenas o principal modo de cognição em poesia; ela é também, pragmaticamente, a grande fonte de inspiração. Blake não escreveu Alexander Pope: a poem in two books, porque não foi Pope quem o predeterminou. Milton e a Bíblia enclausuraram Blake, do mesmo modo como Freud agora nos enclausura, quer o saibamos ou não. Blake tinha ciência de seu enclausuramento, no entanto o idealizava numa repressão poderosamente produtiva. Se o produto, como em Milton, não se inclina mais à crença que à poesia agora me parece muito mais problemático do que foi algum dia. Seria Milton mais o produto da vontade poética, de Los, o profeta com seu malho “nas ruínas que não inspiram piedade derrubando as pirâmides do orgulho”, ou seria o produto da própria ansiedade passional de Blake, de Luvah “raciocinando a partir dos quadris nas formas irreais da noite de Beulah”?
A sombra de Milton, para Blake, havia penetrado no pesadelo da história, que inclui o representante daquele pesadelo mais amplo, a história da poesia. Blake nos disse que “em Milton, o Pai é o Destino, o Filho, uma Razão dos cinco sentidos & o Espírito Santo, o Vácuo!”. Começo a recear que, em Blake, o Pai seja Milton, o Filho, o próprio Blake, o que é uma profunda redução de Milton e da Bíblia, e o Espírito Santo da inspiração, uma súplica especial não muito convincente. Blake, como os poetas da sensibilidade, deixou-se ficar naquele teatro mental, naquele kenoma ou vacuidade sensível, que se posta entre a verdade do iluminismo e o sentido do alto romantismo. Ele não poderia pôr abaixo as verdades sagradas, nem da lenda nem do antigo canto, nem de uma história que claramente poderia emergir do abismo do seu próprio ego forte, como emergiu de Wordsworth, mesmo quando Blake escrevia suas próprias epopeias curtas. Blake é dos últimos de uma antiga linhagem de poetas; Wordsworth foi o primeiro da linhagem de poetas que ainda temos conosco. Blake é arcaico, como talvez desejou ser. Wordsworth é mais moderno que Freud, mais pós-moderno que Samuel Beckett ou Thomas Pynchon, porque Wordsworth achou, só, o novo caminho — ai de nós, o nosso caminho — para pôr abaixo verdades sagradas.
Faz apenas dez anos desde que li pela primeira vez O prelúdio de duas partes, datado de 1799, um poema com menos de mil versos, publicado somente em 1974. Lê-lo novamente é uma experiência extraordinária, em parte pelo choque de recontextualização que o poema por força proporciona a qualquer leitor que esteja profundamente familiarizado com O prelúdio, do modo como o finalizou Wordsworth em 1805, ou com a obra de 1850, publicada postumamente, a qual recebeu seu título curiosamente enganoso da viúva do poeta. Para Wordsworth, ele sempre foi seu “poema a Coleridge”, e a primeira parte da sua obra-prima projetada, The recluse [O recluso]. Temos a grata surpresa de encontrar num único local todas as grandes passagens dos “sítios do tempo”, mas a experiência estética de apreender o Prelúdio de duas partes transcende esse prazer. Por quase mil versos passamos de altura em altura, sem nenhum daqueles baixios e lugares de repouso de que os dois Prelúdios mais longos têm de sobejo. Os primeiros quatro cantos do Paraíso perdido, e também o sétimo e nono cantos da epopeia de Milton, são os únicos exemplos comparáveis de semelhante sublimidade prolongada na poesia de nossa língua. Talvez Night the ninth, being the Last Judgement, de The four zoas de Blake, seja mais um rival, porém Night the ninth ultrapassa o sublime por ter um desígnio assaz direto a nosso respeito. Voltar à vida cotidiana depois de o ler vez por outra me proporciona aquela sensação peculiar que todos nós acolhemos quando saímos de uma matinê de cinema para a luz do sol em uma tarde de verão. Wordsworth dá-nos um sublime com que podemos conviver, e nunca de modo mais terno do que no Prelúdio de duas partes.
A crítica, observou Oscar Wilde, é a única forma civilizada de autobiografia, e Oscar sempre estava certo. Jamais senti alguma afinidade particular com Wordsworth, como senti com Blake e Hart Crane quando era jovem, e como sinto com Shelley e Wallace Stevens desde a época em que estudava na universidade. Não acho que amei a poesia de Wordsworth, do modo como amo a poesia de Walt Whitman ou de Emily Dickinson, ainda os poetas mais fortes que nosso país já produziu. Mas leio Wordsworth da maneira pessoal com que leio a Bíblia hebraica, à procura de consolação, pela qual não entendo alegrar-me a mim próprio. À medida que passam os anos, desenvolvo um horror cada vez maior da solidão, de me surpreender tendo de me defrontar com noites sem sono e com dias de frustração nos quais o ser deixa de saber como conversar consigo próprio. Wordsworth, mais do que qualquer outro poeta, ensina-me como suportar o peso de continuar a conversar comigo mesmo. Não creio que somente o processo de envelhecimento, ou as tristezas do romance familiar, ou as vicissitudes da pulsão se qualifiquem como as fontes mais verdadeiras de nossa necessidade de perpetuamente reaprender a conversar com nós mesmos. O único transcendentalismo de Freud foi sua exaltação do princípio da realidade, a desencantadora aceitação de nossa própria mortalidade. Todos temos dentro de nós algum vestígio do platonismo. Freud era encantado por estar desencantado, pelos prazeres de deixar de ser iludido. Meu maior elogio a Freud é dizer que ele é o Wordsworth do século XX, curiosa observação para se fazer meio século após sua morte. Proust e Kafka são os poetas centrais do século XX, e o legítimo representante deles subsiste conosco em Samuel Beckett, decerto o mais importante escritor vivo no Ocidente. Mas esses últimos exemplares do sublime apenas nos são acessíveis como versões do insólito freudiano, nosso limite conceitual para o sublime. Freud é nosso Wordsworth, mas não me sacrifica Wordsworth, como me sacrificou Blake. A gente não perde Wordsworth, e gostaria de explicar por que, se eu puder.
Meu falecido professor Frederick Pottle escreveu um ensaio sobre Wordsworth e Freud intitulado “A teologia do inconsciente”. Suponho que seja o elo apropriado; nem Wordsworth nem Freud eram teólogos inconscientes — entretanto, ambos buscavam substituir um deus moribundo por um novo, o deus do ser interior em perpétuo crescimento. Isso faz de ambos descendentes do meu arauto bíblico menos favorito, o doentio Jeremias, mas Wordsworth e Freud eram muito mais benignos do que o histericamente poderoso Jeremias. Este nutria uma paixão positiva pela destruição que lamentava, ao passo que aqueles sentiam profunda afeição por todos nós e imensa simpatia por nosso mal-estar com a cultura. Todavia, receio que Wordsworth e Freud foram também responsáveis por inscrever a Lei em nossas partes internas, e, assim, levando a cabo o programa iluminista de internalizar todos os valores. Isso parece uma acusação injusta quando se leva em conta a insistência de Wordsworth na progressiva e cada vez maior humanização do coração humano pela qual vivemos, e a incessante ênfase de Freud na constatação da realidade. A alteridade é o ensinamento explícito de Wordsworth e de Freud, seja o outro o objeto dos afetos do coração ou o objeto das pulsões. Entretanto, algo há de equívoco nessa alteridade, freudiana ou wordsworthiana, porque, tropologicamente, tal alteridade é um tipo de morte, uma figuração da própria morte de uma pessoa.
Nosso pai Freud, em “Luto e melancolia”, refletiu sobre esse sutil e perigoso equívoco: “Como condição básica da qual procede o instinto de vida, chegamos a reconhecer um amor-próprio do ego, o qual é tão imenso, com o medo que cresce com a ameaça da morte vemos liberado um volume tão vasto de libido narcisista, que não podemos conceber como este ego é capaz de conceber em sua própria destruição”.
No entanto, o que não podemos conceber, o ego certamente concebe; ele cria o ser interior. Se apenas o ser interior pudesse permanecer consigo, então tudo poderia estar bem, mas Freud pesarosamente nos diz que “o homem deve, em última análise, começar a amar para que não adoeça”. Wordsworth nos diz o mesmo, com um pesar menos declarado, no Prelúdio de 1805 e depois, mas de forma alguma no Prelúdio de duas partes de 1799, que deve muito do seu extraordinário poder ao seu amor-próprio sublimemente tranquilo. O que o poema chama natureza é autenticamente uma alteridade, mas uma alteridade sem a distração de outros eus. Há, naturalmente, Coleridge, a quem o poema é dirigido, porém ele não é uma ausência nem uma presença; ele é Horácio para o Hamlet de Wordsworth, e, assim, um substituto para o público leitor. Todavia, a natureza, como uma dura e fenomenal alteridade, certamente não é um substituto para coisa alguma, e é notavelmente similar ao princípio de realidade de Freud, o contexto que envolve o ser interior, um contexto que tem início como universo do sentido e termina como universo da morte. Se o iluminismo europeu pode ser definido como um alto racionalismo, uma confiança na capacidade da nossa razão de apreender o mundo acuradamente e, por meio dessa apreensão, nele alterar o que necessita de alteração, então a natureza wordsworthiana de certo modo demarca o limite desse racionalismo iluminado. Entretanto, tão dialética é a poesia de Wordsworth que em um modo inteiramente diferente a visão que ele tem da natureza leva ao ápice o programa do iluminismo para a razão. O Prelúdio de duas partes gira continuamente, assim como boa parte da poesia da grande década de Wordsworth, em torno do topos do como e em que medida a mente do poeta é senhor e mestre, e o sentido exterior, o servo da vontade da mente. Qualquer sublime que se baseie no poder da mente sobre um universo da morte tem de fazer-se em pedaços naquela rocha da alteridade, constituída, por fim, pela morte, nossa morte.
A neurose, de acordo com Freud, é consequência da tentativa de abolir o passado pessoal do indivíduo; isso dificilmente quer dizer que Freud considerasse o passado como sendo diferente de um fardo intolerável. Em Wordsworth, o passado não é um fardo mas uma força, sem a qual caímos no estado de morte-em-vida. Suponho que essa diferença seja o que faz de Freud um continuador do iluminismo, ao passo que Wordsworth é algo mais, um alto romântico, como agora o poderíamos chamar. Se existe semelhante diferença entre Freud e Wordsworth quanto à alteridade da morte parece-me algo mais problemático. Como o tropo do pai, da Bíblia em diante, é o único tropo ocidental que não participa nem das origens nem dos fins, ao passo que o tropo da mãe permeia tanto origens quanto fins, é bem convincente que Freud associe de maneira explícita qualquer morte ao modo como “todo passado se agita dentro de alguém”. A culpa, segundo Freud, é sempre a culpa de ter sobrevivido ao pai, presumivelmente por causa do desejo reprimido de tê-la assassinado. A segunda passagem do “sítio do tempo” no Prelúdio se concentra na morte do pai de Wordsworth, ocorrida em dezembro de 1783, cinco anos depois da morte da mãe do poeta. O Wordsworth de treze anos espera numa serrania, acompanhado de dois de seus irmãos, pelos cavalos que os levariam para casa no Natal:
Era um dia
Tormentoso, rude e turbulento, e na grama
Sentei-me, parcialmente protegido por um muro nu.
Em minha mão direita, uma única ovelha,
Na esquerda, o pilriteiro assobiante, e lá,
Os dois companheiros a meu lado, observava
Forçando intensamente a vista, de vez que a névoa
Revelava panoramas intermitentes do bosque
E da planície embaixo. Antes que retornasse à escola,
Naquela ocasião lúgubre, antes que tivesse me demorado
Por dez dias na casa de meu pai, ele morreu,
E eu e meus dois irmãos, órfãos,
Seguimos seu corpo até a cova.6
Desses dois companheiros ao pé do muro nu, o pilriteiro deixou de assobiar e tornou-se crestado no Prelúdio revisório de 1850. O despojamento da cena é crucial, na medida que seus atores principais são o tempo e a elevação escalada pelo Wordsworth de treze anos, que se localiza numa encruzilhada edípica, “o ponto de encontro de duas estradas”. Toda a passagem, assim como todos os sítios do tempo, apresenta uma intensidade curiosamente reprimida, uma euforia de expectativa, ou ânsia de esperança, como o poeta logo a chamará. Essa expectativa, como se acelerasse o acontecimento, é a da morte do pai, que Wordsworth não poderia ter conhecido em qualquer sentido consciente. No entanto, isto é o que sucede a imagem da procissão funeral dos órfãos:
O acontecimento
Com todo o pesar que nos causou, parecia
Uma punição; e quando eu recordava
Aquele dia, tão recente, quando, do penhasco,
Olhava em tal ânsia de esperança,
Com as ponderações banais da moralidade,
Mas com a mais profunda das paixões, curvava-me, a saudar
A Deus, que assim me corrigia os desejos.7
Deus não é aludido muitas vezes no Prelúdio, e Ele talvez não seja totalmente idêntico à terceira presença anônima do poema que, em momentos de crise, inclui tanto a natureza quanto a imaginação de Wordsworth. O Prelúdio, assim como seu antepassado mais próximo, o Paraíso perdido, não é um poema agostiniano. Afinal de contas, santo Agostinho dividia com Deus o universo, mas Milton e Wordsworth estavam totalmente sós no cosmo. Hazlitt, em suas “Observações acerca de The excursion”, astuciosamente associava Wordsworth à revisão que Milton faz do Gênesis na invocação do Espírito Santo: “Talvez se possa dizer que ele cria sua própria matéria; os pensamentos dele são o seu real assunto. Sua compreensão paira por sobre aquilo que é ‘sem forma e vazio’ e o torna fecundo. Ele vê todas as coisas dentro de si. Ele dificilmente recorre a objetos ou situações notáveis, mas, em geral, rejeita-os como interferência nas obras de sua própria mente, como perturbação do fluxo uniforme, profundo e imponente de seus próprios sentimentos”.
Devido ao fato de O prelúdio, mais do que The excursion, ser mais bem interpretado como uma forte desleitura do Paraíso perdido, Hazlitt proveitosamente alude à postura protestante da imaginação partilhada por Milton, Wordsworth e ele mesmo. É com uma paixão dissidente que o rapaz Wordsworth se curva reverencialmente a uma deidade que de modo nenhum obtém êxito na correção dos desejos de um grande poeta por gerar-se totalmente a si próprio. Aquilo a que Wordsworth denomina Deus tem muito a ver com essas “ponderações banais da moralidade”, ao passo que “a mais profunda das paixões” está reservada para o mistério do ser interior em perpétuo crescimento. Essa paixão é esboçada na passagem seguinte, que teria sido a conclusão de um Prelúdio de cinco cantos que Wordsworth projetou em março de 1804:
E mais tarde o vento e a chuva de granizo,
E toda a atividade dos elementos
O carneiro solitário, a única árvore crestada,
E a triste música daquele velho muro de pedra,
O ruído do bosque e da água, e a névoa
Que no curso de cada uma daquelas duas estradas
Avançava em tais indisputáveis formas —
Todos esses eram cenas e sons a que
Daria reparo muitas vezes, e de lá havia de beber
Como de uma fonte. E estou certo de
Que nessa hora mais tardia, quando a tempestade e a chuva
De dia ou à meia-noite batem em meu telhado,
Quando estou nos bosques, desconhecidas para mim
As obras do meu espírito daí me são trazidas.8
Podemos nós definir aquela fonte? A sequência inteira obviamente era crucial para Wordsworth, já que pensou em colocá-la na conclusão do poema. Diz-se no Prelúdio de duas partes que os sítios do tempo “retêm uma virtude frutificadora”, enquanto nos Prelúdios de 1805 e de 1850 “renovadora” substitui “frutificadora”. Ajudar a mente a dar frutos é uma função mais forte do que renová-la, e talvez o melhor título para o poema de duas partes de 1799 tivesse sido “Sítios do tempo”, de vez que nada no texto poderia deixar de confirmar esse notável oxímoro. “Sítios” supostamente são mais ou menos pequenos, e têm limites precisos, mas tal definibilidade se esvai quando eles são “do tempo”. Numa famosa carta a Walter Savage Landor, Wordsworth expressou uma preferência por visões em que as margens das coisas se dissolviam, com toda fixidez e densidade postas em fluxo, com os limites recuando e as expectativas vindo à luz. Os sítios do tempo não são momentos do lugar, nem ocorrem em um lugar. As crenças podem se localizar num santuário ou num local similar, mas frutificações demandam um continuum temporal. A fonte de cenas e de sons não é um topos, mas um acontecimento que se estende por duas épocas e conserva vivo o passado no presente. Quando fala das obras de seu espírito, Wordsworth não descreve uma crença de que algo seja assim, mas uma crença numa aliança, uma aliança estabelecida entre sua mente atenta e uma presença dominadora não inteiramente distinta do seu melhor aspecto. O que testemunham os sítios do tempo é a dimensão espantosa da mestria da mente sobre o universo da morte, mas uma mente como essa é mais do que elitista, ela é teomórfica. Wordsworth celebra sua própria natureza divina, o que é uma asserção incômoda, como até mesmo eu reconheço. Mas o que mais seria o autêntico fardo da poesia de Wordsworth senão sua noção de estar predestinado a ser o profeta da natureza, como diz, sucedendo Milton, o profeta do protestantismo? Se existe crença no Prelúdio, ou em qualquer outra poesia vital da grande década, ela só pode ser crença na força imaginativa da própria infância divina do indivíduo. Comentando sua ode “Prenúncios de imortalidade”, Wordsworth foi mais claro do que qualquer exegeta pode esperar ser:
Na infância, nada me era mais difícil que admitir a ideia da morte como um estado aplicável ao meu próprio ser […] não era tanto da fonte de vivacidade animal que advinha a minha dificuldade, quanto de um sentido da indomabilidade do espírito em mim. Costumava meditar sobre as histórias de Enoc e de Elias, e quase persuado a mim mesmo de que, seja o que for que os outros se pudessem tornar, eu deveria ser trasladado em alguma coisa do mesmo modo para o céu. Com um sentimento análogo a esse, eu era em geral incapaz de pensar as coisas exteriores como tendo existência exterior, e privava com tudo o que considerasse não distante da minha própria natureza imaterial, mas inerente a ela.9
“A indomabilidade do espírito em mim” é um sentimento protestante e miltoniano para Wordsworth, mas suponho que devamos agora identificar tal postura como wordsworthiana, visto que ele continua a ser nosso arquétipo do moderno poeta forte. Quem, desde ele, em qualquer língua ocidental, foi capaz de competir com ele? Por quase dois séculos já, Wordsworth triunfou no agon do sublime, a despeito de Hölderlin e Keats, Victor Hugo e Walt Whitman, Browning e Emily Dickinson, e, no século XX, Rilke, Valéry, Yeats e Wallace Stevens. Cada vez mais reconhecemos que há um continuum de Homero a Goethe, e que algo diferente tem início com Wordsworth, algo que continua a começar, apesar de todas as ondas do modernismo, pós-modernismo ou o que se queira. Na mais longa perspectiva a que podemos chegar, o supostamente sóbrio e inofensivo Wordsworth continua a ser o poeta mais original e intrigante do século XIX ou XX. Ele também me parece em muito o mais difícil, e não apenas por ser inexaurível à meditação. Ele fez o que até mesmo Blake não poderia fazer, e, em certo sentido, o que até mesmo o próprio Freud não pôde levar a cabo, a despeito da assombrosa originalidade do fundador da psicanálise. Somente Wordsworth o fez de modo novo, começou de novo não apenas sobre uma tábula rasa da poesia, como afirmou Hazlitt, mas sobre uma tábula rasa da consciência humana.
Isso não quer dizer que Wordsworth tenha rompido com a tradição de Locke, com o iluminismo, mas ele modificou severamente o modo como a mente esclarecida apreendia a natureza e o destino da consciência humana. Em seu modo mais exaltado, a razão pode parecer um tropo do alto alemão quando deparamos com ela em Coleridge, mas ela também é algo diverso em Wordsworth, que sempre permaneceu essencialmente o pré-coleridgiano de “Culpa e tristeza” em vez de um idealista continental. Os Wordsworth de Geoffrey Hartman e de Paul de Man são igualmente dialéticos em suas negações, mas o verdadeiro Wordsworth da grande década ainda me parece um agonista miltoniano, em contenda não com a natureza, até mesmo em sua derradeira aparência de mortalidade, mas com o próprio Milton sagrado. Tal como sua força agonista e geradora, o Wordsworth que leio é um monista, além do vitalismo heroico por não necessitar de uma postura tão desesperada e tardia. O Prelúdio de 1799 completa o trabalho do Paraíso perdido ao eliminar a distinção entre a poesia sagrada e a secular. O que ele celebra em última análise não é a natureza nem Deus, nem mesmo uma presença que transcenda a própria força criativa de Wordsworth. Antes, o poema louva o próprio arrebatamento de Wordsworth, sua própria sublimidade exaltada, o pathos do bardo miltoniano emancipado de quaisquer representações que pudessem inibir o ser plenamente imaginado:
Mas que isso ao menos
Não seja esquecido: que eu ainda conservava
Minha primeira sensibilidade criativa;
Que pela regular ação do mundo
Minha alma era indômita. Um poder moldável
Continuava comigo, mão que dava forma, por vezes
Rebelde, agindo de maneira discordante,
Espírito local que só a si se pertencia, em guerra
Com a tendência geral, mas na maioria das vezes
Subordinado estritamente às coisas exteriores
Com que se comunicava. Uma luz auxiliar
Desprendeu-se de minha mente, que, no pôr do sol,
Concedeu novo esplendor; as aves melodiosas,
A brisa suave, as fontes que continuam jorrando
Tão ternamente murmurando em si mesmas, obedeciam
A império semelhante, e a tormenta, à meia-noite,
Enegrecia ainda mais, na presença de meus olhos.
Daí a minha deferência, daí a minha devoção,
E daí o meu arrebatamento.10
Como se três “daís” fossem insuficientes, Wordsworth deixa em destaque o último, de modo que podemos saber que a ordem da prioridade e a da autoridade se fundem aqui na própria “primeira sensibilidade criativa” desse poeta. “Primeira” assume seu sentido miltoniano de “a mais antiga”, como o faz cinco vezes nos versos iniciais do Paraíso perdido. Como é simples substituir o Satã de Milton por Wordsworth nas partes da proclamação de Wordsworth do “daí o meu arrebatamento”: Eu ainda conservava meu primeiro ser generado por si mesmo, / Que pela ação do Tirano Celestial/ Minha alma foi submetida. Um poder imortal/ Continuava comigo, certa mão que dava forma, por vezes/ Rebelde, atuando de maneira discordante, / Um nobre espírito que só a si se pertencia, em guerra/ Com a autoridade imposta. Entretanto Satã se vai, e surge um Wordsworth mais original, quando observamos uma “luz auxiliar” vinda da mente do poeta e concedendo novo esplendor ao sol que se põe, como o fará no término da ode “Prenúncios de imortalidade”. Há, aqui, um translado da figura do pôr do sol no final de Lycidas, e da internalização pelo bardo cego da Santa Luz na invocação ao canto três do Paraíso perdido. Mas, por termos partido da sátira iluminista de Pope e Swift, passando pelo contrailuminismo da admoestação de Blake contra o raciocinar a partir dos quadris nas formas irreais da noite de Luvah, para chegar ao sublime egotístico verdadeiramente triunfante no preternaturalmente forte Wordsworth, eu preferiria terminar com um translado americano um tanto mais vulnerável do que o arrebatamento wordsworthiano. Nosso sublime americano exalta com mais franqueza a poesia acima da crença, e acolhe sua declaração clássica no ousado momento das Songs of myself [Canções de mim mesmo], onde nosso próprio pai, Walt Whitman, deliberadamente volta as costas a Wordsworth e se defronta com o terrível nascer do sol de nossa terra vespertina. No pathos de Walt Whitman, soberbamente medido e magnífico na consciência que tem de si mesmo, ouvimos nossa réplica aos exilados da tradição entre a verdade e o sentido:
Deslumbrante e imenso, quão rápido o nascer do sol me mataria,
Se eu não pudesse agora e sempre espargir de mim mesmo luz solar.11
BLOOM, Harold. Abaixo as verdades sagradas. Trad. de Alípio Correa de Franca Neto e Heitor Ferreira da Costa. São Paulo: Companhia de Bolso, 2012.
NOTAS:
1. The crown o’ th’ earth doth melt. My lord! / O, wither’d is the garland of war, / The soldier’s pole is fall’n! Young boys and girls/ Are level now with men; the odds is gone, / And there is nothing left remarkable/ Beneath the visiting moon.
2. No voice divine the storm allayed, / No light propitious shone, / When, snatched from all effectual aid, / We perished, each alone: / But I beneath a rougher sea, / And whelmed in deeper gulfs than he.
3. Then first I saw him in the Zenith as a falling star/ Descending perpendicular, swift as a swallow or swift / And on my left foot falling on the tarsus, entered there; / But from my left foot a black cloud redounding spread over Europe…
4. But Milton entering my Foot; I saw in the nether/ Regions of the Imagination; also all men on Earth / And all in Heaven, saw in the nether regions of the Imagination / In Ulro beneath Beulah, the vast breach of Miltons descent. / But I knew not it was Milton, for man cannot know/ What passes in his members till periods of Space & Time/ Reveal the secrets of Eternity: for more extensive/ Than any other earthly things, are Mans earthly lineaments. / And all this Vegetable World appeared on my left Foot, / As a bright sandal formd immortal of precious stones & gold: / I stooped down & bound it on to walk forward thru’ Eternity.
5. To cleanse the Face of my Spirit by Self-examination, / To bathe in the Waters of Life, to wash off the Not Human, / I come in Self-annihilation & the grandeur of Inspiration/ To cast off Rational Demonstration by Faith in the Saviour/ To cast off rotten rags of Memory by Inspiration/ To cast off Bacon, Locke & Newton from Albions covering/ To take off his filthy garments, & clothe him with Imagination/ To cast aside from Poetry, all that is not Inspiration…
6. ’Twas a day/ Stormy, and rough, and wild, and on the grass/ I sate half sheltered by a naked wall. / Upon my right band was a single sheep, / A whistling hawthorn on my left, and there, / Those two companions at my side, I watched/ With eyes intensely straining, as the mist / Gave intermitting prospects of the wood/ And plain beneath. Ere I to school returned/ That dreary time, ere I had been ten days/ A dweller in my father’s house, he died, / And I and my two brothers, orphans then,/ Followed his body to the grave.
7. The event / With all the sorrow which it brought, appeared/ A chastisement, and when I called to mind/ That day so lately passed, when from the crag/ I looked in such anxiety of hope, / With trite reflections of morality, / Yet with the deepest passion, I bowed low/ To God who thus corrected my desires.
8. And afterwards the wind and sleety rain, / And all the business of the elements, / The single sheep, and the one blasted tree, /And the bleak music of that old stone wall, / The noise of wood and water, and the mist / Which on the line of each of those two roads/ Advanced in such indisputable shapes — / All this were spectacles and sounds to which / I often would repair, and thence would drink / As at a fountain. And I do not doubt / That in this later time, when storm and rain / Beat on my roof at midnight or by day/ When I am in the woods, unknown to me/ The workings of my spirit thence are brought.
9. Nothing was more difficult for me in childhood than to admit the notion of death as a state applicable to my own being […] it was not so much from the source of animal vivacity that my difficulty came as from a sense of the indomitableness of the spirit within me. I used to brood over the stories of Enoch and Elijah, and almost persuade myself that, whatever might become of others, I should be translated in something of the same way to heaven. With a feeling congenial to this, I was often unable to think of external things as having external existence, and I communed with all that I saw as something not apart from, but inherent in, my own immaterial nature.
10. But let this at least / Be not forgotten, that I still retained/ My first creative sensibility, / That by the regular action of the world / My soul was unsubdued. A plastic power/ Abode with me, a forming hand, at times/ Rebellious, acting in a devious mood, / A local spirit of its own, at war/ With general tendency, but for the most / Subservient strictly to the external things/ With which it communed. An auxiliar light / Came from my mind, which on the setting sun / Bestowed new splendor; the melodious birds, / The gentle breeze, fountains that ran on/ Murmuring so sweetly in themselves, obeyed / A like dominion, and the midnight storm / Grew darker in the presence of my eye. / Hence my obeisance, my devotion hence, / And hence my transport.
11. Dazzling and tremendous, how quick the sunrise would kill me,/ If I could not now and always send forth sunlight from myself.