“O prior da Ordem da Santa Temeridade” – Peter SLOTERDIJK

A obra de Cioran pode ser considerada como um conjunto de exercícios, a meio caminho entre ginástica e ascese, experimentando todas as posições do homem sem posição. 

Parece-me que a melhor maneira de abordar o fenômeno Cioran é escolher como fios condutores duas proposições de Nietzsche: “Quem se despreza, ainda preza a si mesmo como desprezador”; “Moral: que homem prudente escreveria hoje uma palavra honesta sobre si? — para isso, teria que pertencer à Ordem da Santa Temeridade.”[2] Essa última observação se refere ao caráter inevitavelmente desagradável de toda biografia de grandes homens, por menos que ela entre em detalhes, e mais ainda à inverossimilhança psicológica e moral de uma autobiografia sincera – ao mesmo tempo, no entanto, ela designa a condição à qual a exceção poderia sobrevir.

De fato, podemos ver Cioran como o prior da ordem à qual Nietzsche alude aqui. Sua santa temeridade deriva de uma atitude que Nietzsche considerava como a mais inverossímil, e sem dúvida também como a menos desejável: a ruptura com todas as normas de discrição e de tato – para não mencionar o pathos da distância. […] Nietzsche [ele mesmo] foi um profeta tímido que apenas vislumbrou, pelas rachaduras da porta, as perdas que ele via chegarem.

Desprezar-se para respeitar-se

Utilizando-se as palavras “após Nietzsche” para situar a própria data de nascimento, como o fazia Cioran, estava-se condenado a ir mais longe. O jovem Cioran romeno não apenas seguia o conselho de Nietzsche colocando-se no topo da Ordem da Santa Temeridade (com outros especialistas da autoexposição, como Michel Leiris); ele também colocava em prática o programa que consistia em fundar a última possibilidade de respeito a si mesmo sobre o desprezo por si mesmo. Se ele podia realizá-lo, é porque apesar do carácter inabitual do seu projeto, ele possuía o espírito do tempo que o antecedeu. A virada histórica que conduziu à explicitação do latente o arrastou em seus rastros e o levou a despejar no papel coisas diante das quais qualquer autor teria recuado alguns anos antes. Nessa virada, a “palavra honesta sobre si”, que Nietzsche tinha ao mesmo tempo postulado e praticamente excluído, alcançava uma energia sem precedentes. A sinceridade se torna um modo de escritura da ausência de cuidado para consigo mesmo. Doravante não se pode tornar-se autobiógrafo sem ser autopatógrafo – isto é, sem tornar público seu registro de doenças. É sincero quem admite aquilo que lhe falta. Cioran foi o primeiro a subir a rampa e declarar: falta-me tudo – e, pela mesma razão, tudo me é demasiado.

[…] Quando era estudante, Cioran conduziu experimentos com as afirmações revolucionárias correntes à época, e passeou na atmosfera de extremismo da direita romena. Tomou gosto pelo misticismo da mobilização coletiva, que então estava na moda, e pelo ativismo vital que era exaltado como um remédio ao ceticismo e a uma vida interior em posição de se desfazer. Tudo isso levava a buscar a salvação no fantasma da “Nação” – parente longínquo do espectro que ronda hoje em dia sob o nome de “retorno da religião”.

Cioran não permaneceu por muito tempo nessa posição – por mais que ela tivesse sido uma de várias. Com o tempo, o adoecimento crescente, causado por suas excursões histéricas na positividade, lhe rendeu sua clarividência. Assim que veio se instalar em Paris, em 1937, para lá viver como eremita por quase sessenta anos, ele certamente não estava ainda totalmente curado da tentação de participar da grande história, mas se distanciava cada vez mais das exaltações de sua juventude. O humor agressivo e depressivo que o havia marcado desde o começo devia a partir de agora se exprimir sob outras formas. É apenas nessa fase que ele veio a se estabelecer no gênero da “palavra honesta sobre si”. “Eu me extraviei nas Letras por impossibilidade de matar ou de me matar. Essa covardia apenas fez de mim um escritor.” Ele nunca mais retomou a linguagem do engajamento pela qual fora possuído e que ele havia exacerbado com o talento do imitador púbere. A admiração cega que ele havia nutrido nos anos de juventude pela Alemanha e sua renovação brutal, ele também a abandonou com o passar do tempo. “Se estou curado de uma doença, é exatamente desta”.[3] A palavra honesta sobre sua própria doença compreende para ele a confissão de ter querido se tratar com meios inapropriados. Curado de uma vez por todas, ele se dedicou à tarefa que consistia em inventar o escritor Cioran, que devia fundar uma nova empreitada com o capital psicopático que ele havia descoberto em si na sua juventude. O personagem que ele se inventou à época poderia ter sido uma figura imaginada por Hugo Ball, o co-fundador do dadaísmo de Zurique: ele representa um “homem pressionado”, o santo de variedades, o clown triste que transforma em revistas em série o desespero e a recusa de se tornar o que quer que seja.

A “obra” de Cioran permite observar com a maior saliência possível os principais aspectos do grande rosto da modernidade, a secularização da ascese e a informalização da espiritualidade. Nele, diferentemente do que se passa com os mandarins de Paris, o existencialismo não se exprime como um existencialismo engajado da resistência, mas numa série sem fim de atos de desprendimento. A obra desse existencialista da recusa se constitui numa sucessão de cartas de rejeição das tentações de se implicar e de adotar uma posição. Seu paradoxo central se cristaliza assim de maneira cada vez mais clara: a posição do homem sem posição, o papel do ator sem papel. Desde o primeiro dos seus livros parisienses, o Breviário de Decomposição, de 1949, Cioran alcançou em seu trabalho de estilista o nível dos mestres – Paul Celan o traduziu ao alemão em 1953 com o título Lehre vom Zerfall. Ele teria certamente absorvido, com consequências duráveis, o espírito da época do “sem”, quando se desejava andar “sem muletas”, “sem Deus”, “sem mestre”, mas as muletas que ele deseja quebrar são aquelas da identidade, do pertencimento, da coesão lógica. Ele só estava convencido de um princípio: é importante não estar convencido de nada. De livro em livro, ele perseguiu seu exercício de acrobacia existencialista no solo, cuja proximidade com as figuras artísticas de Kafka salta aos olhos. Seu número estava estabelecido desde o começo: aquele do marginal de ressaca que força seu caminho não apenas na cidade como no universo: um desabrigado [sans-abri], ilegal [sans-papiers], sem bons modos [sans-gêne]. Não é à toa que a coletânea mais impressionante de suas considerações autobiográficas leva o nome de Cafard.[4] Enquanto parasita em exercício, Cioran reabilitou o sentido grego da palavra: parasitos, aquele que vem se sentar à mesa já posta, o nome que os atenienses davam aos convivas que eram convidados para contribuir ao divertimento do banquete.  O imigrante romeno em Paris não teve problemas em satisfazer esse gênero de expectativa. Ele constatou, em uma carta aos seus pais: “Seu eu tivesse tido de natureza silenciosa, eu já teria morrido de fome há muito tempo”. Ademais: “Todas as nossas humilhações provêm de que não podemos resolver-nos a morrer de fome”.[5] […]

Pode-se, portanto, afirmar que Cioran foi o primeiro a realizar aquilo que Nietzsche quis desmascarar como se tivesse existido desde sempre: uma filosofia do puro ressentimento. E se uma filosofia desse tipo só tivesse sido possível após Nietzsche e sob o seu impulso? Nela, o existencialismo da obstinação de origem alemã – contornando o existencialismo da resistência, da obediência francesa, que Cioran desprezava como uma moda – se transforma em um existencialismo da incurabilidade, tingido com tintas cripto-romenas e dácio-bogomilas, para parar no fronteira do inexistencialismo asiático. Em todas as épocas de sua vida, Cioran experimenta, ao modo da vanitas europeia, o sentimento de uma irrealidade global; no entanto, ele não chega a decidir-se a seguir o budismo na medida em que este abandona a tese da realidade enquanto tal e, junto com ela, a tese de Deus. […]

Mais inutilizável que um santo

Contribuindo à descoberta do fato de que mesmo a indecência é capaz de fazer arte se a vontade de potência a ela se assomar, considerada obrigação de se deixar levar por ela, Cioran ajudou a Ordem da Santa Temeridade a descobrir uma regra – ela é conservada no livro de estranhos exercícios em relação ao quais quero mostrar que, enquanto agregado de asceses não-declaradas, trata-se da verdadeira acusação da “cultura moderna”, um livro que faz romper qualquer amarração. O livro que fundou sua reputação – Breviário de Decomposição – mostra em que medida Cioran era consciente do seu papel na transposição do hábito espiritual em profano desacordo, e de sua exploração literária. Originalmente, essa coletânea de aforismos deveria levar o nome de “Exercícios negativos” – o que poderia muito bem significar exercícios de negação ou anti-exercícios. O que Cioran apresentava não era senão uma regra que deveria levar seus adeptos à via da “inutilizabilidade” [inutilisabilité] para o mundo da eficácia. Se existisse uma meta para esta via, ela seria: “Ser mais inutilizável que um santo…”

A tendência da nova regra é anti-estoica. Enquanto que o sábio estoico faz de tudo para estar conforme o universo, […] o asceta cioraniano deve rejeitar a tese do cosmos enquanto tal. Sua própria existência deve testemunhar o fracasso da criação. Mesmo a transformação do cosmos em criação só é aceita por Cioran na medida em que Deus entra em jogo aqui como o agente de uma pane total, instigador que se pode acusar. Por um instante, Cioran roça a prova moral de Deus em Kant, ainda que sob auspícios diferentes. A existência de Deus deve ser postulada com necessidade, pois Deus deve se desculpar pelo mundo.

O procedimento de Cioran para esses anti-exercícios repousa sobre a elevação do ócio ao estatuto de forma de expressão da revolta existencial. O que ele chama de “ócio” é na verdade um derivado organizado voluntariamente, e que nenhuma espécie de trabalho estruturado compromete, através dos estados de alma cambiantes do espectro maníaco-depressivo – um procedimento que antecipa a magnificação ulterior da deriva, a errância de uma situação a outra segundo os situacionistas da década de 50. A vida consciente à deriva equivale a uma amplificação pelo exercício da sensação da descontinuidade, amplificação à qual Cioran estava predisposto por este carácter lunático que ele frequentemente mencionava. O efeito de amplificação é, ademais, realçado de modo dogmático pela tese agressiva de que a continuidade é uma “idéia demente” – ele poderia ter-se limitado a qualifica-la como uma construção artificial. Existir significa doravante: sentir-se mal nestes pontos de atualidade sempre novos.

Ao pontualismo da observação de Cioran por si mesma, que oscila entre momentos de contração e difusão, correspondem a forma literária do aforismo e o gênero da coletânea de aforismos. O autor desenvolve precocemente uma grade relativamente simples de seis ou oito temas a partir dos quais ele analisa minuciosamente seus estados à deriva para chegar a cada vez, desde um ponto de experiência, a um nó temático que lhe corresponde. Com o tempo, os temas – como as personalidades parciais ou as redações que trabalham em paralelo – constituem uma vida específica sobre cuja base eles se desenvolvem se autoprolongando, sem nunca ter que esperar o pretexto no vivido. O “autor” Cioran não é senão o redator que submete a um trabalho editorial os produtos do seu escritório íntimo de escritura patológica. Ele reúne em forma de livros aquilo que seus colaboradores interiores fornecessem rotineiramente: são eles que, ao longo de reuniões irregulares, apresentam o material – aforismos resultantes do serviço da blasfêmia, considerações enviadas do estúdio da misantropia, provocações despachadas  da seção de perdas de ilusão, proclamações feitas da assessoria de imprensa do circo dos solitários, teses fornecidas pela agência de imposturas sobre o abismo e venenos destilados pela redação encarregada do rebaixamento da literatura contemporânea. Apenas a formulação do pensamento do suicídio permanece sempre para Cioran o trabalho de chefe de redação, este pensamento que recebe/esconde [réceler] o exercício do qual dependem todas as outras séries de repetição – apenas ele permite, de crise em crise, restabelecer o sentimento indispensável de viver soberanamente na miséria. Ademais, os responsáveis dos temas principais sabem o que, em cada caso, vem das redações vizinhas, ainda que eles se citem cada vez mais uns aos outros e se aproximem. O “autor” Cioran não faz senão inventar títulos de livros contendo uma alusão ao seu gênero – silogismos, maldições, palavras do além-túmulo, confissões, vidas dos santos, fios condutores do fracasso, tanto quanto os subtítulos que obedecem a uma lógica análoga. Na prática cotidiana, ele é bem menos um homem que escreve do que um homem que lê, e se existiu em sua vida uma atividade que, de longe, pareceu um trabalho regular ou um exercício formal, esta foi a leitura e releitura de livros, que lhe servia como fonte de consolação e de contradição. Ele leu cinco vezes, no original espanhol, a Vida de Santa Teresa d’Ávila. As numerosas leituras são integradas no processo de seus próprios anti-exercícios e constituem, com os souvenirs daquilo que se disse a si mesmo, um engavetamento de interações à potência n. […]

Profilaxia eficaz

A história dos efeitos que os livros de Cioran produziram mostra que ele foi imediatamente reconhecido por seus leitores como um mestre do exercício paradoxal. […] Enquanto que o treinador ordinário é “aquele que quer que eu queira”, o treinador espiritual funciona como “aquele que não quer que eu não queira” – que me dissuade de abandonar. De resto, me contento com a alusão ao fato de que os livros de Cioran foram, para um número indeterminado de leitores, uma profilaxia eficaz do suicídio – diz-se que as conversas com ele lhe produziam o mesmo efeito. Aqueles que buscavam conselho puderam descobrir de que maneira ele havia descoberto a maneira mais sã de ser incurável. Leio a obra de “exercícios negativos” de Cioran como uma outra indicação do fato de que na produção da “civilização elevada” (o que quer que isso possa significar), um ascetismo de pano de fundo, o mais frequentemente dissimulado, entra em jogo (Nietzsche o torna visível lembrando o imenso sistema de treinamentos rígidos que constituem a base da superestrutura da moral, da arte e de todas as “disciplinas”) – um ascetismo que só alcança a primeira linha de visão no momento em que os exercícios standard mais impressionantes, chamados “tradições”, se encontram na situação do artista da fome kafkiano: desde o instante em que se pode dizer deles que o interesse […] por uma forma de vida diminui, libera-se aqui e lá o terreno no qual desenhadas as partes visíveis do edifício. […]

Dossier “Cioran. Désespoir, mode d’emploi”, Le Magazine Littéraire, Maio de 2011. Traduzido do alemão ao francês por Olivier Mannoni.

Traduzido do francês por Rodrigo Inácio R. Sá Menezes (27/10/2012)


[1] Este artigo constitui a versão abreviada de um texto publicado nos Cahiers de l’Herne: Cioran. Os colchetes preenchidos com aspas indicam os cortes no texto original.

[2] Ao traduzir para o português, utilizei as traduções de Paulo Bezerra (Cia. das Letras). No caso da segunda passagem de Nietzsche, extraída da Genealogia da Moral, 3ª dissertação (“Que significam os ideais ascéticos?”), a expressão “Ordem da Santa Temeridade” carece de um termo a mais que integra a referida expressão conforme ela aparece na edição francesa (Gallimard) utilizada por Sloterdijk, e consequentemente no título deste artigo: “Ordre de la Sainte Folle Témérité”, ou seja, “Ordem da Santa [Louca] Temeridade. (Rodrigo Menezes)

[3] Citado por Bernd Matheus, Cioran. Porträt eines radikalen Skeptikers, Berlin, ed. Mathes & Setiz, 2007, p. 234.

[4] Cafard. Originaltonaufnahmen 1974-1990, de Thomas Knoefel e Klaus Sanders (org.), com posfácio de Peter Sloterdijk.

[5] “A miséria: excitante do espírito”, in: Breviário de Decomposição (trad. de José Thomaz Brum)

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