“O Tradicionalista e o Gnóstico” – Rodrigo Menezes

Se nos buscamos fora de nós mesmos, encontraremos a catástrofe, erótica ou ideológica. Deve ser por isso que Ralph Waldo Emerson, em seu fundamental ensaio “Self-reliance” [Autodependência] (1840), observou que “viajar é o paraíso dos tolos”. […] Buscar Deus fora do eu é cortejar os desastres do dogma, a corrupção institucional, a malfeitoria histórica e a crueldade.

Harold BLOOM, Presságios do milênio: anjos, sonhos e imortalidade

Como distinguir um Gnóstico de um Tradicionalista? Que diferença há entre eles?

Por mais “espiritual” e “religioso” que se queira, o Gnóstico despreza a fé em verdades reveladas e instituídas, bem como a crendice sobrenatural, preteridas em nome da divagação, da fabulação e da criação poética (em toda sua potência imaginativa), ao passo que o Tradicionalista é um fiel guardião das verdades reveladas e estabelecidas.

Uma mentalidade religiosa descrente e solitária

Segundo Harold Bloom (nosso gnóstico-modelo), “poesia e crença vagueiam, juntas e separadas, num vazio cosmológico marcado pelos limites da verdade e do sentido. Em algum ponto entre a verdade e o sentido pode-se encontrar, empilhado, um terrível acúmulo de descrições de Deus.” Como bom gnóstico que é, o crítico literário norte-americano esposaria de bom grado o espírito trágico de Clément Rosset, segundo o qual “uma única fórmula basta para caracterizar o pensamento trágico: a impossibilidade de crer que possa haver crença.” Por quê?

Toda crença, posta à prova, é incapaz de precisar aquilo em que ela crê; ela é pois sempre, rigorosamente falando, uma crença em nada; ora, crer em nada equivale a nada crer. O homem pode então crer em tudo o que bem entender, ele não poderá nunca se impedir de saber silenciosamente que aquilo no que ele crê é – nada. A intuição fundamental do pensamento trágico está aqui: a incapacidade dos homens, não em se desembaraçar de sua ideologia (isto sendo apenas a conseqüência de um mal mais radical), mas em constituir uma ideologia. As mais imaginativas, às mais otimistas das crenças faltará sempre um objeto que permitiria ao ideólogo aderir verdadeiramente à sua crença, ao pensador trágico estimar que o crente crê naquilo que ele diz crer.

Cl. ROSSET, Lógica do pior

Assim pensa o Gnóstico, que acolhe, para além ou aquém da necessidade de um absoluto transcendente e consolador, a contingência e o absurdo deste mundo, e especialmente da condição humana dentro dele. O Gnóstico se identifica com Deus, e “crê” em Deus, seu Nada divino, em virtude do absoluto de sua própria experiência interior (a exemplo de Bataille), dispensando toda mediação extrínseca, teológica e/ou eclesiástica. Sua Divindade é nada, seu Nada é divino. Dixit Cioran: “Sem Deus tudo é nada; e Deus? Nada supremo.”

O pensador transilvano costuma demorar-se no momento da queda, no aspecto exterior e mundano da existência gnóstica (marcada pela dualidade), dando a entender que o caminho de volta o retorno, a restauração interior do espírito está fora de cogitação. Daí o lamento, o lirismo elegíaco; daí também o orgulho luciferino da decomposição autoconsciente:

A vida é apenas um torpor no claro-escuro, uma inércia entre luzes e sombras, uma caricatura desse sol interior que nos faz crer ilegitimamente em nossa excelência sobre o resto da matéria. […] Nada prova que sejamos mais que nada. Para sentir constantemente esta dilatação na qual rivalizamos com os deuses, em que nossas febres triunfam sobre nossos pavores, precisaríamos nos manter em uma temperatura tão elevada que acabaria conosco em poucos dias. Mas nossos relâmpagos são momentâneos; as quedas são nossa regra. A vida é o que se decompõe a todo momento; é uma perda monótona de luz, uma dissolução insípida na noite, sem cetros, sem auréolas, sem nimbos. […] E de esperar uma voga de retiros em uma eternidade sem fé, uma tomada de hábito no nada, uma Ordem liberta dos mistérios, onde nenhum “irmão” suplicaria nada, desdenhando sua salvação tanto como a dos outros, uma Ordem da salvação impossível…

Breviário de decomposição (1949)

Com sua irreverência e criatividade habituais, Peter Sloterdijk se refere aos dois momentos principais do drama gnóstico, a “queda” e o “retorno”, em termos emprestados da terminologia eletroquímica: o caminho “catódico” (do grego kathodos, “descida”, “caminho para baixo”) e seu inverso, o caminho “anódico” (de anodos, “subida”, “caminho para cima”). A partir da harmonia no trato com essas duas curvas, ele distingue entre gnoses vulgares e amadurecidas. Nas vulgares, afirma Sloterdijk, “o espírito dos indivíduos não consegue transcender visões externas míticas do ‘estar a caminho’: nesse caso, o interessado lê histórias de almas como romances de quiosque, em que Deus e o pneuma se encontram no fim.” (Pós-Deus)

Tal não é o caso de Cioran, que fez de tudo para não ser lido dessa maneira (no tocante ao happy end, não tanto ao quiosque), a começar pela assinatura de sua nova persona autoral francesa, tendo estreado em 1949 com o Breviário de decomposição citado logo acima. As gnoses vulgares seriam ávidas de happy ending, segundo Sloterdijk, impacientes para acompanhar a alma do protagonista do drama gnóstico em seu feliz retorno ao “lar”, em sua salvação necessária e certeira, incapazes de demorar-se no trajeto “catódico”: a Queda no mundo da decomposição. Mas tampouco seria isso, não exclusivamente, o que faz as “gnoses maduras” segundo o critério de Sloterdijk. Ele evoca, entre seus grandes proponentes históricos, Orígenes e Plotino na Antiguidade neoplatônica, e Hans Jonas na filosofia contemporânea (sem citar Harold Bloom, talvez por não ser filósofo, e tampouco Cioran, que entretanto será citado algumas páginas mais adiante).

A avidez otimista e fantasiosa das gnoses vulgares, segundo Sloterdijk, culminará em obras-primas do wishful thinking ingênuo, como o filme Matrix (do qual Jean Baudrillard recusou ser o consultor externo), e nas receitas de autoajuda esotérica da cultura new age (tomemos o fenômeno derrisório dos “coaches quânticos”, por exemplo) Cioran inclui entre as gnoses vulgares a teosofia (“Pensar contra si“). Para Sloterdijk, o pensador transilvano se encaixa na classe dos “temperamentos sombrios” para os quais “a parte catódica da curva para o mundo permanece uma queda altamente catastrófica – uma viagem ao inferno do imperdoável. A preocupação desses ardentes da catástrofe se volta completamente para a redenção da maldição do mundo. Eles batem a cabeça contra a parede cósmica, tentam pular a cerca da perdição.” (Pós-Deus)

Nous sommes tous au fond d’un enfer dont chaque instant est un miracle. [Estamos todos no fundo de um inferno, no qual cada instante é um milagre.]

CIORAN, Le mauvais démiurge (1969)

*

Em se tratando das questões fundamentais e finais, primeiras e últimas, o Tradicionalista deposita sua fé na verdade estabelecida pela tradição religiosa (por vezes reunindo muitas delas na unidade sublime de uma “filosofia perene”); o Gnóstico apoia-se, do princípio ao fim, em sua própria experiência individual, no seu nada interior, em comunhão com as experiências de outros (poucos) indivíduos com os quais sente uma afinidade eletiva.

O Gnóstico é um anarquista espiritual (Fiorillo), um místico aborígene “em estado selvagem” (Bollon), um desajustado universal contemporâneo do Caos, um solitário desconfiado até da própria sombra; o Tradicionalista é supersticioso, conspiracionista e proselitista, um “espírito de rebanho” (Nietzsche).

O Gnóstico se dá o luxo (como Nietzsche) de ser cético, ateu, niilista, décadent, um espírito livre que desconhece verdades e autoridades estabelecidas; o Tradicionalista que se permite esses luxos deixa de ser um Tradicionalista.

O Gnóstico crê e descrê: quando crê, não crê que crê, e quando descrê, crê que descrê, bem diferente do credo quia absurdum, de Tertuliano – ponto de partida de todos os “cavaleiros da fé”.

Mais ou menos a mesma distância entre o Cético e o Fanático: o Gnóstico seria “infinitamente cético e infinitamente crente”, conforme à definição de Jean-Yves Leloup do Tomé gnóstico, do evangelho apócrifo (traduzido e comentado pelo próprio Leloup); um “eleito” para a solidão de sua experiência interior. E um insubmisso por instinto.

O Tradicionalista está contra a modernidade; o Gnóstico, contra a “Criação-Queda”, no dizer de Harold Bloom, esse “pecado de Deus”, “o primeiro ato de sabotagem”, para falar como Cioran, que se erige em “perito em anti-Criação” (História e utopia). O Tradicionalista é antiglobalista; o Gnóstico, “anticosmista” (contra a ordem cósmica, vista como entrave, sujeição à matéria, opressão pela necessidade).

O Tradicionalista crê que a verdade divina revelou-se de uma vez por todas, cabendo ao fiel depositar toda sua fé nos objetos e instituições que a representam neste mundo; para ele, a Criação divina era perfeita em si mesma, todo o mal subsequente sendo culpa de uma infração imemorial dos protótipos de nossa espécie. O Gnóstico crê que a verdade se atualiza a cada instante em sua existência, sendo o drama humano inseparável do divino (ao criar, Deus “enroscou-se” e foi “arrastado” para dentro da Criação, caindo junto com ela). A crise inicial, como a queda posterior, é dentro da divindade. Deus é o primeiro ateu.

A história humana é, no fundo, um drama divino. Pois Deus não só intervém como também sofre paralelamente, e com uma intensidade infinitamente maior, o processo de criação e destruição que define a vida. […] Toda forma de Deus é autobiográfica. Não apenas procede de nós, como nós nos interpretamos nela. É uma dupla visão introspectiva que nos revela a vida da alma como eu e como Deus.

Lacrimi și sfinți (1937)

É digno de nota que a maior expressão, em Cioran, de um autoconhecimento gnóstico entre o homem e Deus, em que a experiência interior (mística) é descrita como um processo recíproco através do qual o humano se reconhece no divino e o divino no humano, encontre-se em Lágrimas e santos: um livro aparentemente nem um pouco gnóstico, mas simplesmente blasfemo no interior de uma ortodoxia hegemônica. E “quanto mais nos conhecemos a nós mesmos”, escreverá ele em Amurgul gândurilor [O crepúsculo dos pensamentos], “mais subscrevemos às exigências de uma higiene que almeja alcançar a transparência orgânica”, uma transparência interior total que faria Deus ficar para trás como uma última doença superada, uma ninharia, um artigo irrisório do espírito.

Se “estamos todos no fundo de um inferno” (no qual “cada instante é um milagre”), Deus estará também, sofrendo-o com uma intensidade infinitamente maior, tendo criado um mundo infernal para habitá-lo e dissolver-se nele, a exemplo da criatura.

O Tradicionalista é teólogo; o Gnóstico é poeta. Um é de direita (amiúde de extrema direita), um autêntico reacionário; o outro é um misfit do cosmo, um existência atópica, sem lugar nem destino no mundo. Um sente-se perfeitamente em casa no mundo, a Criação do seu Deus; o outro considera a Criação um “detalhe funesto”, um “erro de percurso”, um “não-lugar universal” (Cioran). Em seu apofatismo absoluto, o Gnóstico diria, na contramão de Wittgenstein: o mundo é tudo o que não é o caso.

Ocorre-nos esta passagem do ensaio sobre o pensamento reacionário, dedicado a Joseph de Maistre (um dos textos em que mais se pronuncia o gnosticismo de Cioran, antítese do catolicismo de Maistre):

É absurdo imaginar que a verdade consiste na opção, quando toda tomada de posição equivale a um desprezo pela verdade. Para nossa infelicidade, a escolha, a tomada de posição é uma fatalidade a que ninguém escapa. Cada um de nós deve optar por uma não realidade, por um erro, convencidos dele à força, como doentes, febris: nossos assentimentos, nossas adesões são como que sintomas alarmantes. Todo aquele que se confunde com o que quer que seja mostra disposições mórbidas: não existe salvação nem saúde fora do ser puro, tão puro quanto o vazio.

Exercícios de admiração: ensaios e perfis

Enfim, nada mais valioso na busca ou manutenção da “divina verdade”, sempre em devir, do que a visão interior e a reflexão, a inquirição e a contemplação, a imaginação e a curiosidade, a vontade de conhecer e o sabor do saber (amargo ou agridoce), o pensamento crítico e lúcido, inclusive contra si mesmo, as verdades sagradas e os “dogmas inconscientes” que albergamos como “fortalezas ambulantes e irrefragáveis”.


SÁ MENEZES, Rodrigo Inácio R., “O Tradicionalista e o Gnóstico”, Portal E.M. Cioran Brasil, 06/09/2021

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