Apenas dura aquilo que foi concebido na solidão, diante de Deus, quer sejamos crentes quer não.
CIORAN, Do inconveniente de ter nascido, p. 54.
Crer em Deus nos dispensa de crer em qualquer outra coisa – o que é uma vantagem inestimável. Sempre invejei os que creem nele, ainda que crer-se Deus me pareça mais fácil do que crer em Deus.
CIORAN, Aveux et Anathèmes, Œuvres, p. 1656
“O elemento dominante nas tradições religiosas ocidentais”, observa Harold Bloom, “tende a ser de orientação institucional, histórica e dogmática”, o que se aplica ao judaísmo, cristianismo e islamismo igualmente.[1] Em todos eles, Deus é concebido como externo ao eu.[2]
Esta observação nos é crucial, servindo de critério hermenêutico da experiência religiosa de Cioran, como uma pedra de toque para compreendê-la em sua singularidade heterodoxa. “Se nos buscamos fora de nós mesmos, encontraremos a catástrofe, erótica ou ideológica”, assevera Bloom, pois “buscar Deus fora do eu é cortejar os desastres do dogma, a corrupção institucional, a malfeitoria histórica e a crueldade.”[3]
Parece a descrição de uma experiência, de amarga decepção, que Cioran conheceu muito bem na transição entre os anos romenos e a expatriação na França, período turbulento que compreende a grande reviravolta simbolizada pelo Breviário de decomposição. Parece também uma experiência muito familiar à realidade brasileira atual, em que o governo federal instrumentaliza cinicamente a religião popular, fomentando o fanatismo cego (irracionalismo), a intolerância religiosa, o racismo e a xenofobia. Não é fortuito que as investigações da Polícia Federal sobre grupos neonazistas no Brasil tenham aumentado 270% nos últimos 3 anos (!). Poder-se-ia imaginar, a respeito do nosso país (hoje, um verdadeiro “Brasil Paralelo”), um Breviário da decomposição brasileira.

Bloom evoca Ralph Waldo Emerson, com sua máxima de Ne te quaesiveris extra [Não te busques fora de ti], para elaborar sua definição do que seria o “simples gnosticismo”, em que “simples” [mere] tem o sentido de elementar, essencial.[4] A atitude gnóstica seria – inversamente ao imperativo de buscar Deus fora de si – uma espiritualidade autoafirmativa e solitária, pautada nisso que Emerson entende por self-reliance (“autodependência” na tradução de Marcos Santarrita). “A autodependência é uma doutrina solitária, discorda vigorosamente da afirmação de Marx de que a menor unidade humana são duas pessoas.”[5]
O itinerário e o pensamento existenciais de Cioran confirmam a primazia da solidão: condição sine qua non da experiência interior. “A única experiência profunda é a que se realiza na solidão”, diz ele a Sylvie Jaudeau, e conclui: “Aquela que resulta de um contágio permanece superficial – a experiência do nada não é uma experiência de grupo”, dando a entender de que forma se delineia, essencialmente, toda experiência interior profunda (ESJ 17).
O gnosticismo concebe o princípio divino como interior e consubstancial ao eu: a alma psicológica e individual, o eu historicamente determinado, “contém” o Eu absoluto e é “contido” por Ele; a alma (psykhé) subsome em sua profundidade o espírito (pneuma), um princípio puramente espiritual que, na visão dos gnósticos, é de essência divina – não do Criador, deus ilegítimo, mas de uma divindade infinitamente transcendente e superior a ele, sem nenhuma relação com a sua temerária Criação.[6] A hegemonia milenar da religião normativa dificulta em grande medida a compreensão de Cioran como um pensador religioso sui generis.[7] As categorias de pensamento e formas mentais da religião se perpetuam até nas inteligências mais ateias. Ademais, é forçoso reconhecer que a esfera de influência do cristianismo alcança em grande medida, ainda que a contragosto, a subjetividade do próprio autor, filho de sacerdote ortodoxo, oriundo de uma nação tão fervorosamente cristã, até no ateísmo, como a Rússia. Cioran às vezes dá a impressão de não saber muito bem onde e como buscar Deus, se fora (como um crente ortodoxo) ou dentro de si (como um gnóstico na concepção de Bloom). Acaba por não encontrá-lo em parte alguma – se é isso mesmo que queria. O hamletismo cioraniano é a conclusão “cética”, hesitante, da lucidez após a experiência de uma dilatação infinita do espírito para dentro, de uma experiência espiritual dificilmente suportável, em meio à qual Cioran sente – “nos cumes do desespero” – rivalizar com Deus. O Livro das ilusões (1936) é a melhor ilustração desta experiência, ainda no calor do momento.[8] Nada mais penoso – e indesejável – que a theosis, a deificação da criatura, o sentimento, por mais ilusório que seja, de se tornar um deus, de ser tão despojado e tão lamentável como Deus (IN 9). Se há uma religiosidade, e um pathos místico, em Cioran, são heterodoxos, na contramão da normatividade comum, de acordo com Harold Bloom, a todos os monoteísmos ocidentais.
Após a desilusão decorrente de buscar-se “fora” [extra], Cioran será fiel, em sua proclamada lucidez, ao princípio emersoniano de Ne te quaesiveris extra. A rigor, não há nada (ser, absoluto, verdade) a ser buscado “fora” – e talvez nem mesmo “dentro”. Desde as páginas iniciais do Breviário de decomposição (cf. “Genealogia do fanatismo”), a lição a ser extraída é que buscar-se a si mesmo (ou a Deus) fora de si conduz forçosamente à idolatria e ao fanatismo: “tara capital que dá ao homem o gosto pela eficácia, pela profecia e pelo terror” (BD 14-15). Cioran escreve nos Cahiers: “Só existem as coisas que descobrimos por nós mesmos; são também as únicas que conhecemos verdadeiramente. […] As palavras profundas da Gītā, que é preciso ter sempre presentes ao espírito: ‘Mais vale perecer em sua própria lei que se salvar pela de outrem’” (C 133). A versão cioraniana da self-reliance está marcada por uma solidão inapelável, pela lucidez como consciência de um “fracasso essencial” e pelo imperativo de “avançar sempre a um grau mais alto de insegurança”.[9]
“Chegado ao mais íntimo de seu outono, oscila entre a Aparência e o Nada, entre a forma enganosa do ser e sua ausência: vibração[10] entre duas irrealidades…” (BD 125).
A “autodependência” cioraniana representa, enquanto afirmação da primazia da solidão, uma oportunidade de perder-se nos abismos de Deus ou do Nada, o privilégio de um Fracasso essencial e inaudito:
“Busquei em mim mesmo meu próprio modelo. Para imitá-lo, dediquei-me à dialética da indolência. É tão mais agradável fracassar na vida…”
Silogismos da amargura
Cumpre assinalar a comunhão postulada por Harold Bloom entre gnose e poesia (ou literatura em geral), em virtude da qual o gnosticismo, antes e agora, é “uma disciplina tão estética quanto espiritual”.[11] O que diz muito sobre a obsessão de um descrente por Deus, que cumpre para Cioran uma função autopoiética fictícia. Poderíamos incluí-lo na linhagem de espiritualidade autoafirmativa (o que não quer dizer otimista), própria dos “eus fortes” (cuja força pode manifestar-se no fracasso da impotência), evocada por Harold Bloom; uma tradição espiritual “jamais reconciliável com a fé institucional ou historicizada”, e que mantém “estreitas afiliações com as visões dos poetas e gente de letras, tanto assim que textos gnósticos e literários podem e devem ser reunidos numa antologia que rivalizaria com a ótima Filosofia Perene de Huxley. Tal livro poderia chamar-se O Arsenal Espiritual.”[12] Um título para Cioran. Nos tempos modernos, a gnose encontra mais acolhida entre poetas, estando mais à vontade na vizinhança da Poesia[13] (e da Música[14]), do que entre filósofos, nos continentes da Filosofia, alinhada à Ciência ou à Política.[15] Compartilhamos da convicção de Harold Bloom, de que “é infrutífero literalizar ou descartar a experiência espiritual – antiga, medieval ou contemporânea”, uma lição pragmática que o crítico literário extrai de William James, em As variedades da experiência religiosa, e que consiste em “reconhecer as experiências religiosas importantes como autênticas diferenças: umas das outras e entre nós.”[16]
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Antropologicamente, a dualidade constitutiva do pensamento de Cioran se traduz na figura do homo duplex, de onde a oposição entre homem exterior e homem interior, o primeiro – dimensão histórica e social da existência humana – sendo o objeto privilegiado dos moralistes, ao passo que o segundo – a dimensão metafísica e intemporal de nossa natureza – pertenceria de direito aos místicos (E/Œ 1417; AR 13). Cioran não é (só) um moraliste – na linha de La Rochefoucauld, La Bruyère, Chamfort ou Joubert –, nem simplesmente um filósofo cético, como tem sido interpretado por alguns eruditos, pela mesma razão que Pascal, na sua visão, é muito mais do que um moraliste (e um cético). Cada um à sua maneira, Pascal e Cioran são espíritos trágicos e místicos que se debruçam sobre o homem interior. Como se lê no prefácio à Antologia do retrato (texto que coincide quase integralmente com “L’Amateur de mémoires”, em Écartèlement):
Entre os moralistas somente Pascal se debruçou sobre a dimensão metafisica da existência humana (também não consta que ele tenha reparado em algum autor de retratos). Ao lado dele, todos os outros, sem exceção, parecem fúteis porque não perceberam nossa miséria, e sim nossas misérias, esta soma de insuficiências, de enfermidades inevitáveis e insignificantes, que exprimem apenas um aspecto de nossa natureza. Mas se não perceberam o mal capital, intrínseco, que lhe é inerente, não devia escapar-lhes, em compensação, esse mal medíocre e geral, em luta com um bem de mesmo quilate. Maniqueístas de salão, seduzidos por um dualismo anedótico, hostis ou inaptos a essa solidão em que se debate o homem interior, frente a frente consigo ou com Deus. Não será significativo que quando por acaso se voltam para Pascal é para secularizar sua visão da concupiscência adaptando-a ao estudo dos costumes e rebaixando-a ao nível de uma “psicologia” sem trevas?
CIORAN, Prefácio à Antologia do retrato: de Saint-Simon a Tocqueville, p. 14.
A julgar pelo símile antropológico do homo duplex, Cioran estaria para os seus contemporâneos franceses mais ou menos como Pascal para os “maniqueístas de salão” do século 17. Numa época de platitudes e de ideologização sistemática do pensamento, Cioran se destaca pelo “comércio com os místicos” que, segundo Savater, tende a desacreditar qualquer intelectual que se preze. O autor dos Pensamentos é um filósofo (e teólogo) de confissão católica, na tradição agostiniana, ao passo que o pensamento de Cioran se alinha, em seu dualismo gnóstico, ao dos Maniqueus e outros gnósticos da Antiguidade. Ambos zombam da filosofia, o que é para eles ainda filosofar. A Filosofia contra a qual Cioran se insurge seria, no fundo, um ídolo, uma degenerescência desse que ele considera o espírito filosófico perfeito, a exemplo dos Antigos, a filosofia como práxis e modo de vida: “Sem querer buscar modelos, penso que só os gregos foram verdadeiros filósofos, os que viveram sua filosofia. É por isso que sempre admirei Diógenes e os cínicos em geral. Essa unidade desapareceu depois. Costumo dizer que a Universidade liquidou a filosofia”, diz ele a Georg Carpat Focke (ENS 257-8). Ocorre-nos a feliz observação de Joan M. Marín: “Nas antípodas do filósofo-professor-profissional, Cioran remete ao pensador vocacional que viveu o seu pensamento, mas não do que pensou”, o que nos traz uma vez mais à figura do Privat Denker.[17] Cioran se assume como um “pensador (religioso) privado” porque tudo o que pensou e formulou foi experimentado e concebido em meio a uma solidão inapelável, cara a cara consigo mesmo ou com Deus, porque todos os seus pensamentos começam e terminam na mais profunda solidão do “eu”. Ademais, não se faz escola filosófica a partir dos próprios êxtases, ou em torno do vazio que sorri para si mesmo.
No que concerne à consciência religiosa de Cioran, na intersecção entre gnosticismo e niilismo, Sylvie Jaudeau permanece sendo a nossa principal referência hermenêutica. Ninguém foi tão a fundo como ela no exame deste conjunto de tópicos tão essenciais para o nosso autor. Opostamente, Clément Rosset e Fernando Savater se mostram de acordo sobre o amigo romeno em torno de um ponto crucial. Segundo Rosset, Cioran é “um dos únicos filósofos de nossa época, se não o único, que não pode ser suspeito de religiosidade”, tendo percebido “a dose de religiosidade que se esconde na maioria das ideologias modernas, as quais reintroduzem a religião que pretendem combater sob as espécies novas do sentido da história ou da cientificidade” (Alegria: a força maior). É impensável, segundo Rosset, que o “Antiprofeta” possa ter qualquer “preocupação religiosa”, que a lucidez cioraniana permita sonhar com outros mundos, ou com nenhum, além deste. Por outro lado, se submetermos o pensamento de Cioran aos critérios da Lógica do pior rossetiana, que se pretende uma filosofia puramente trágica, sem nada de místico ou de metafísico, o resultado é um retrato muito distinto, contrário ao que é pintado em Alegria: a força maior. Pensamos, inversamente, que Cioran é um dos poucos filósofos do século XX, se não o único, que se destaca pela religiosidade ateia e pelo niilismo gnóstico, pelo pathos místico heterodoxo que conduz para “fora do mundo”, “fora da história”. Uma filosofia de fundus animæ religiosamente irreligiosa, própria de “pensadores crepusculares”, a plasmar teoria filosófica grega e mito oriental da alma – hibridismo herdado da antiga gnose. Numa época de platitudes e homogeneização ideológica do pensamento, Cioran é “metafisicamente incorreto”, um herege para a religião e para a filosofia. Savater observa que “nenhum tema é mais presente em sua obra do que Deus”, acrescentando logo que isto não tem nada a ver com nenhuma “preocupação religiosa”. (Ensayo sobre Cioran) Pensamos que tem, e vamos demonstrá-lo. Seria o caso de perguntar: o que Cioran espera ao negar? Negação não é indiferença, é ação, dinamismo, askesis (exercício); “negar equivale a um programa”, como se lê em Le démon est-il sceptique?. E “se fazemos com que a salvação resida no ato, negar é salvar-se, é perseguir um desígnio, desempenhar um papel” (CT/Œ 1107). Savater aborda a questão da relação entre lucidez e mística “cheio de dedos”:
Dir-se-á que isto é mística. Palavra perigosa, desprestigiada entre todas, que Cioran maneja e estuda com frequência. Confessar o menor conluio com a mística nos torna réus dos máximos pecados contra o espírito moderno: o irracionalismo e a ineficácia. Quem reivindica em qualquer medida a mística, ou não se preocupa em demarcar com nitidez a distância que o separa dela – penso no Bataille de A experiência interior –, renuncia à atenção de seu improvável leitor: todo mundo se sentirá dispensado de compreendê-lo ou de extrair algo de inteligível de sua leitura.
Ensayo sobre Cioran
Savater coloca em pauta uma preocupação asséptica moderna com a mística que é indiferente ao amigo romeno. Mais do que “manejar e estudar” o tema, Cioran encarna a “mística”, que significa, para ele, uma experiência vivida (e padecida) de corpo e alma: “O que não pode traduzir-se em termos de mística não merece ser vivido”, lê-se em Écartèlement (E/Œ 1444). Savater e Rosset incorrem em um mesmo equívoco – do qual o próprio Cioran não deixa de ser, em alguma medida, responsável: interpretar o místico-religioso, no que lhe concerne, em chave criptoteísta (inclusive secularizada, na forma de um humanismo cristão), tendo como paradigma a religião que o autor romeno viveu rechaçando. A oposição entre crer e descrer é uma mera convenção (uma invenção cristã), e um falso dilema. Muitas são as evidências textuais de que, para Cioran, a oposição entre ateísmo e teísmo é uma dicotomia herdada do cristianismo e tributária da forma mentis cristã. É evidente que o pensador romeno não se encaixa nos moldes do crente (pensemos em Abraão, o “Cavaleiro da Fé” de Kierkegaard); com esse paradigma em mente, não há nada de “místico” nem de “religioso” nele (que está mais para um “Cavaleiro da Santa Louca Negação”). Outro equívoco seria equipará-lo a alguma das doutrinas gnósticas historicamente conhecidas, levando a pensar que, se ele não se identifica com nenhuma, é porque não tem nada de gnóstico. Savater sugere que a inteligibilidade dos escritos de Cioran termina onde começa o tema da mística, reiterando, sem querer, o preconceito dos racionalistas. Cioran dialoga com os místicos cristãos, sim, inclusive mede a sua própria experiência com a deles no que concerne ao êxtase, essa felicidade suprema que se pode alcançar por diferentes vias. Aliás, a aproximação com Bataille, notadamente em A experiência interior, não carece de pertinência, a julgar pela comum (e apaixonada) defesa da legitimidade de uma mística adogmática e ateia, dir-se-ia “profana”, livre da “servidão dogmática” imposta pela religião (Bataille). Enfim, no que concerne à mentalidade religiosa de Cioran, entre gnose antiga e niilismo moderno, bem distinta é a opinião de Patrice Bollon (na esteira de Jaudeau), para quem o pensamento cioraniano evocaria uma espécie de “religião essencial”, “para além de todas as religiões determinadas e da qual elas procederiam. Noutros termos, o seu misticismo intelectual o conduz a uma visão antropológica e sincrética” do sentimento religioso da existência, para além ou aquém de qualquer doutrina e confissão religiosa (Bollon). Deveremos nos debruçar sobre este sentimento religioso da existência, que se encontra na raiz do pensamento de Cioran e do estranho saber (negativo, apofático) que a sua obra parece comunicar.
Os juízos hermenêuticos de Savater e Rosset, tão profiláticos em matéria de religião e mística, não resistem a uma leitura minuciosa dos textos de Cioran, nem às incontáveis declarações feitas seja verbalmente, nas entrevistas, seja por escrito, nos cadernos, ambos publicados postumamente. “Eu não creio em Deus, sem por isso ser irreligioso”, afirma Cioran numa entrevista (ENS 250), antes de introduzir a questão do “pecado original” – por uma perspectiva ateológica, puramente como hipótese antropológica – como uma ideia indispensável na sua compreensão da condição humana e da história universal.[18] Um dos grandes pecados modernos, pensa ele, é a pretensão de autossuficiência, nutrida pela idolatria do progresso e da tecnociência, muitas vezes acompanhada de uma soberba tão desagradável quanto ingênua. No ensaio sobre os “cenários do saber” [les décors du savoir], no Breviário, Cioran escreve:
A autossuficiência moderna não tem limites: nos julgamos mais esclarecidos e mais profundos do que todos os séculos passados, esquecendo que o ensinamento de um Buda pôs milhares de seres ante o problema do nada, problema que imaginamos haver descoberto porque mudamos seus termos e introduzimos um pouquinho de erudição. Mas, que pensador ocidental poderia ser comparado com um monge budista? (BD 180).
O homem moderno se julga superior ao homem antigo; o ateu se julga mais “saudável”, e mais “normal”, do que o crente. Cioran se declara incuravelmente “doente”, convencido de que “uma saúde perfeita é a-espiritual” (ESJ 18); para ele, Deus é “uma doença de que nos julgamos curados por já ninguém morrer dela” (IN 157). “Ser moderno é remendar no Incurável” (SA 23). A indiferença ou total insensibilidade das consciências filosóficas contemporâneas ao místico-religioso é percebida por Cioran como um mau sinal, índice de um racionalismo estéril e psicologicamente pueril, da hegemonia da “rainha Razão” (a Razão pura kantiana) em detrimento de toda profundidade, interioridade, paixão, contradição, vitalidade. Nada mais deplorável, pensa Cioran, do que o novo ateísmo (militante, evangelizador e enfatuado)[19]: índice de uma sociedade que se pretende mais “saudável” e autossuficiente do que no fundo é, uma sociedade que idolatra o dinheiro e as coisas, carente vida, de vertigens, de estremecimentos, dessa “tensão vertical” de que fala Sloterdijk, uma sociedade da falsa positividade (Han) em que a volúpia da solidão é cada vez mais um dado desconhecido. Comentando o caráter pseudorreligioso das utopias modernas, e particularmente do comunismo, no contexto romeno, Cioran afirma que “o homem que se torna a-religioso por vontade é um ser que se esteriliza. E o mais antipático é que isso se faz acompanhar sempre de um orgulho exagerado e desagradável. São tipos que têm um vazio interior” (ENS 264). Ele tem em mente a descristianização compulsória do comunismo e de outras utopias totalitárias modernas, que veem na religião um concorrente indesejável que se deve eliminar. Numa entrevista com François Fejtö, Cioran diz: “Sou incapaz de ter fé, mas não sou indiferente aos problemas que a religião nos coloca. […] A quem nunca foi tentado pela religião, faltará alguma coisa. Saber o que é o bem e o mal” (ENS 204), ou que “mesmo o bem é um mal” (ESJ 21). Cioran é um pensador gnóstico, e um metafísico pessimista, nas antípodas de Nietzsche, por tecer uma avaliação moralmente negativa da existência, da vida, do mundo e do homem dentro dele: “Queda”, “ruptura”, “desvio”, “erro”, “pecado original” (coextensivo ao Criador, autor desta “Criação fracassada”), termos que ilustram a visão das coisas sustentada por Cioran.
Analogamente ao Poeta baudelairiano, o Místico cioraniano não tem lugar no mundo moderno, utilitarista e tecnocrático.[20] Cioran se assemelharia ao “louco” retratado por Nietzsche na Gaia Ciência, que “em plena manhã acendeu uma lanterna e correu ao mercado, e pôs-se a gritar incessantemente: ‘Procuro Deus! Procuro Deus!’.”[21] Cioran buscou Deus com paixão, tomando o devido cuidado de não encontrá-lo nunca. “Eu amo a busca da libertação [délivrance] mais do que a libertação mesma” (C 308). No fundo, isto não é uma questão de livre escolha. Estar condenado a buscar, mas não encontrar: eis a fatalidade de Cioran. Contrariando a suposição de que a obsessão de Deus (a questão religiosa de modo geral) é algo datado, uma crise passageira de juventude, os Cahiers de Cioran estão repletos de invocações ao Seigneur: “Senhor, por que não tenho a vocação da oração? Ninguém no mundo está mais perto de ti, nem mais distante. Um pouco de certeza, um nada de consolação, é tudo o que te peço. Mas não podes responder, não podes” (C 23). Por mais que tenha ares de uma piedade cristã, essa – a dualidade de estar mais perto e mais distante de Deus do que qualquer pessoa – é uma caracterização eminentemente gnóstica, tendo como contrapartida o estar no mundo sem pertencer a ele (é a dualidade, na criatura, entre suas dimensões criada e incriada). Nos Silogismos, um aforismo em consonância com a anotação dos Cadernos: “‘Senhor, sem ti estou louco, mas mais louco ainda contigo!’ Esse seria, na melhor das hipóteses, o resultado de um reatamento de contato entre o fracassado de baixo e o fracassado do alto” (SA 76). Não são paradoxos gratuitos, mas confissões de uma experiência interior inefável, fórmulas poéticas de “estados de alma estritamente subjectivos” (TE 119), experiências essenciais e singulares que reclamam a expressão literária como forma de atenuar os seus efeitos erosivos; “quanto ao seu Deus, nunca terminado, sempre imperfeito e mutante”, Cioran registra “os seus momentos e traduz o seu devir num pensamento não menos imperfeito e mutante” (TE 120). Este comentário sobre Angelus Silesius, em “O comércio dos místicos”, aplica-se perfeitamente ao autor romeno. Essa atitude “mutante” em relação a Deus é um dado indissociável da romenidade de Cioran. Ela remonta à insônia (e à crise religiosa) de sua juventude, se não à sua infância em Răşinari, quando o pequeno ateu fugia da mesa para não ter de ouvir as preces do pai antes das refeições. “A minha atitude em reação à religião é ainda a mesma, hoje, uma mescla de tentações contraditórias”, diz ele a Lea Vergine, reiterando o que se depreende dos seus escritos mesmos (ENS 131). “Não é fácil falar de Deus quando não se é nem crente nem ateu: e é sem dúvida o drama de todos nós, teólogos inclusive, não podermos ser nem uma coisa nem outra” (IN 68).
É forçoso reconhecer, contra certos preconceitos esclarecidos, o concurso do místico-religioso na economia do pensamento de Cioran, concomitantemente ao filosófico e o poético. A sua obra, conjunto de Exercícios negativos, nos comunica uma intencionalidade religiosa sui generis, uma latência mística que não se esgotam no quadro de uma discursividade filosófica e/ou literária secular; é a mística negativa de um insone, o êxtase de um niilista, cujo efeito é intensificar a tragicidade da existência, acentuar a consciência da Queda, a lucidez como “equivalente negativo do êxtase”. A mística é a dimensão essencial do pensamento cioraniano, o núcleo vivo da sua obra, percorrendo do horror ao êxtase, da constatação do mal à urgência da libertação. “De onde o anátema, mais que o discurso”, observa Jaudeau, para quem é ocioso, em todo caso, debater acerca da pertença de Cioran à Filosofia. Sendo mais ou menos do que um filósofo, “ele é sobretudo inclassificável e refratário às categorias.”[22] Não é uma preocupação nossa provar que Cioran seja filósofo. Concordamos com Philippe Tiffreau, em que Cioran é “anarquista nas bordas, niilista no meio e místico no centro”. O Místico cioraniano – que se apresenta como um “Não-Liberto”, um “Réprobo”, um “Místico Fracassado” – não está preocupado em convencer, doutrinar, converter ninguém a nada. Não lhe cabe nutrir esperanças. Não é este o propósito que anima sua escritura “autopatográfica”. Cioran nos devolve a nós mesmos.[23] Interpretá-lo como um pensador religioso, como um filósofo existencial e niilista gnóstico, não quer dizer que ele tenha se convertido um belo dia a determinada doutrina de salvação, ou que esteja em posse de um conhecimento esotérico em torno do qual se poderia erigir uma nova religião; significa que o seu pensamento, indissociável da sua experiência de vida, se manifesta como a expressão subjetiva de uma consciência religiosa (e mística, mais que religiosa), marcada pela dualidade entre a beatitude de um êxtase “fora do mundo” e o horror da consciência que “desperta” no “inferno deste mundo”. Seguindo a pista de Sylvie Jaudeau,
[…] nos será mais interessante insistir sobre a expressão de uma gnose que não depende de referências culturais, mas que se desenvolve a partir de uma crise existencial. É antes de tudo pelo seu caráter de experiência vivida que se assinala a originalidade da gnose. Formalizada então em filosofia religiosa, ela deriva primeiramente de uma consciência trágica de nosso ser-no-mundo [être-au-monde].[24]
A “consciência da infelicidade” (Breviário) é uma variedade heterodoxa de consciência religiosa; uma religiosidade trágica marcada pela inadaptação ao mundo e à existência mesma, característica – a julgar por William James – de “almas enfermas” [sick souls], atormentadas e inquietas, perpetuamente insatisfeitas.[25] James descreve um tipo de melancolia religiosa[26] que se pode discernir em Cioran (podemos tratar a melancolia e o ennui, aqui, como praticamente sinônimos). Cioran diz a Sylvie Jaudeau que “para quem tem a fé latente, a dúvida é uma etapa capital, até mesmo obrigatória. […] Mas há quem não consiga superar a dúvida, afetado por uma inaptidão orgânica para a crença. É o meu caso. Sou um duvidador [douteur] nato” (ESJ 24). Perenidade da angústia, um mal-estar difuso que se torna indistinguível da própria duração: é o lote do “Não-liberto” cioraniano, esse grande “Fracassado” [Raté] que, pela consciência da Queda, chega a compreender Deus – e lamentá-lo. “Não ter o sentido do perpétuo senão no negativo, no que faz mal, no que contraria o ser. Perpetuidade da ameaça, da irrealização, do êxtase cobiçado e fracassado, do absoluto entrevisto e raramente atingido; às vezes, contudo, ultrapassado, saltado, como quando se evade de Deus…” (E/Œ 1459). A filosofia religiosa de Cioran, corolário de uma crise existencial que se configura como uma experiência gnóstica sui generis, se enraíza em um sentimento religioso da existência. Este sentimento religioso se manifesta, por exemplo, neste aforismo de Écartèlement (1979):
“Eu não gostaria de viver em um mundo esvaziado de todo sentimento religioso. Não penso na fé, mas nessa vibração interior que, independentemente de qualquer crença, nos projeta em Deus e, às vezes, mais acima.
CIORAN, Écartèlement
NOTAS:
[1] BLOOM, Harold, Presságios do milênio: anjos, sonhos e imortalidade, p. 11.
[2] Ibid., p. 11.
[3] Ibid., p. 19.
[4] Ibid., p. 21.
[5] Ibid., p. 29.
[6] Um termo comum para designar esse “Deus para além de Deus”, nos textos gnósticos, é Pleroma, que significa, numa linguagem menos mitológica e mais abstrata, “Plenitude”. Segundo Kurt Rudolph, “na base da gnose há uma visão dualista do mundo que determina todas as suas constatações em nível cosmológico e antropológico, e que cobrará, em primeiro lugar, nossa atenção. Esse dualismo é acompanhado ou, mais precisamente, entretecido com uma ideia monística que se exprime nos desenvolvimentos entre subida e descida da centelha divina, que é a base da identificação entre homem e deidade (tornada clara na ideia do Deus “Homem”). Incorporada neste ‘dualismo de fundo monístico’ está a doutrina de Deus na gnose, determinada acima de tudo pela ideia do ‘Deus desconhecido’, para além de tudo o que é visível ou sensível, incorporando uma ‘plenitude’ (Pleroma) de anjos e outros seres celestes, sejam eles ideias personificadas (abstrações) ou hipóstases.” RUDOLPH, Kurt, Gnosis: The Nature and History of Gnosticism, p. 57-8. Segundo Hans Jonas, a Queda gnóstica (cuja significação é teológica e cosmológica, mais do que meramente antropológica) tem início devido a uma “crise no Pleroma”, cuja “harmonia reside em sua ordem natural, e isso pela observância de seus limites inerentes por parte de seus membros – que, sendo sujeitos espirituais, não podem avançar na aspiração de saber mais do que seus limites permitem e abolir assim a distância que os separa do absoluto.” A Queda que origina o drama gnóstico da Criação é precipitada “pelo último e mais jovem dos éons”, Sophia, que “saltou para longe e caiu numa paixão à parte do seu consorte. Essa paixão tinha se originado e espalhado desde a vizinhança da Mente e da Verdade, tendo agora infectado a Sophia, desencadeando-se dentro dela de modo a enlouquecê-la, supostamente por amor, mas na verdade por loucura ou presunção, posto que ela não tinha nenhuma comunidade com o Pai enquanto única Mente Incriada.” Este é o Pleroma em sua totalidade e unicidade. Sophia é o seu aspecto arquetipicamente feminino. Grosso modo, o mau demiurgo (o Criador do mundo segundo os gnósticos) é uma emanação – um “filho indesejado” – de Sophia, e ele nem sequer pertence ao reino espiritual do Pleroma, à diferença de sua mãe, apaixonada e temerária. Após a “Criação-Queda” (Bloom), pelas mãos imprudentes do mau demiurgo, cabe a Sophia manifestar-se no mundo, na interioridade de cada alma gnóstica, para resgatá-las da “Criação-Queda” e remediar o erro cometido primordialmente. JONAS, Hans, The Gnostic Religion: The Message of the Alien God and the Beginnings of Christianity, p. 182.
[7] John Gray mostra como os ateísmos mais radicais têm se revelado historicamente como os mais dogmáticos, intolerantes, fanáticos, a exemplo da religião que visam combater. Cf. GRAY, John, Sete tipos de ateísmo. Trad. de Clóvis Marques. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2021.
[8] “Depois de ter tido durante tanto tempo consciência de nossa inanidade, podemos continuar acreditando em algo que não seja Deus? Podemos sentir ainda algo distinto do princípio e do fim? Por que não nos educaríamos na consciência de nossa própria divindade? Não perdemos todos tanto para que, ao menos, tenhamos direito à última ilusão, à ilusão absoluta? E por acaso nossas solidões não têm vozes suficientes para apregoarmos a realidade de nossa ilusão? Não são musicais e sonoras todas as solidões e não têm de cantar-nos a glória de estar tão sós que queremos ser tudo?” (LI 60; grifo nosso). “Vivamos todos e cada um como um deus, vivamos no mito da própria divindade. Não é o infinito nosso âmbito e a música nossa temperatura? Não medimos tudo em raios de luz e em sons? Não nos asfixiam nossas próprias vibrações, nossos cânticos ocultos e nossas melodias definitivas e últimas?” (LI 96; grifo nosso). “Para transfigurar-te no mito da existência absoluta, deixa-te invadir pelas sensações mais estranhas. Não lamentes sentir-te como último representante de uma espécie em vias de extinção, como um grande assassino, como um cavaleiro do fim e do nada ou como um deus deserdado… A tua finalidade última não é chegar a ser um deus sem mundo?” (LI 97; grifo nosso) “Se não haveis estado doentes de vosso excesso de plenitude, nunca haveis alcançado os limites; se não haveis estado doentes de vosso absoluto e do absoluto do mundo, estais perdido para vós e para este mundo. Se não viveis vossa divindade, quem se deterá junto a vossa sombra passageira? E sombras são todos os que não querem ser deuses” (LI 99; grifo nosso).
[9] CIORAN, Carta-prefácio a Fernando Savater, in: SAVATER, Fernando, Ensayo sobre Cioran, p. 19.
[10] Esta insólita “vibração” é determinante do sentimento religioso da existência segundo Cioran.
[11] Ibid., p. 33.
[12] Ibid., p. 25.
[13] Um notável exemplo brasileiro é o poeta Claudio Willer, cuja tese de doutorado, em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa (FFLCH/USP), seria editada na forma de livro: Um obscuro encanto: gnose, gnosticismo e poesia moderna (2008).
[14] Erik Satie compôs suas célebres Gnosiennes em 1890. John Zorn, compositor e saxofonista norte-americano, tem lançado singles e álbums com temas gnósticos, como The Gnostic Preludes (Tzadik, 2012).
[15] Peter Sloterdijk é um filósofo com “ouvido musical” para a gnose, muito embora a sua filosofia não manifeste nenhuma pretensão gnóstica (mística em geral). Pós-Deus é a maior prova disso. Por outro lado, John Gray (filósofo que nos é importante por outras razões) equivoca-se completamente sobre o gnosticismo, equacionando-o, nos tempos modernos, ao materialismo cientificista, como se fossem o mesmo tipo de “conhecimento” (episteme, gnosis). Cf. GRAY, John, A alma da marionete: um breve ensaio sobre a liberdade humana, p. 14, 17.
[16] BLOOM, Harold, Presságios do milênio: anjos, sonhos e imortalidade, p. 12-13.
[17] MARÍN, Joan M., Ciorán o el laberinto de la fatalidad, p. 10.
[18] Rosset vincula a necessidade metafísica de buscar pelas causas (arkhai) dos fenômenos, de modo a explicá-los e salvá-los, assim, do puro acaso, à consciência moral (antitrágica, diria Rosset) que não resiste a avaliar (e condenar) moralmente a existência em face do sofrimento: “Nenhuma desgraça poderia suceder sem uma causa; em virtude desse princípio, o pensamento moral, quando ocorre um acontecimento que o aflige, tensiona-se completamente na busca de responsáveis e culpados, em vez de considerar o acontecimento em si mesmo. É que, evidentemente, não há nada nele que possa alimentar uma busca de explicação, a qual retorna sempre à seguinte questão: ‘Explica-me por quê e como este acontecimento se deu, dado que não deveria ter acontecido’.” Assim, questionar-se “por que algo em vez de nada?”, a exemplo da Grundfrage [questão fundamental] postulada por Heidegger em Was ist Metaphysik?, a questão metafísica por excelência que não deixa de inquietar também o espírito filosófico de Cioran, seria em si mesma um indício dessa tendência a moralizar (e reprovar) o acaso do real. Segue Rosset: “Em todas as partes onde houver dor, haverá castigo, nos diz Nietzsche. É que o sofrimento é como a prova mesma desse castigo, logo da falta; porque se o acontecimento, que não deveria acontecido, produz-se apesar de tudo, é que, apesar de tudo, teve de ser, e a ideia de pecado e de falta é a única explicação possível. Estamos aqui nas fontes mesmas da noção da culpabilidade, que se revela como uma tentativa de negar o sofrimento tentando deduzi-lo de uma causalidade, de um pecado, sem os quais este sofrimento não se teria produzido; […] Se o homem sofre, é porque fez por merecer.” ROSSET, Clément, El mundo y sus remedios, p. 130; 133-4.
[19] O “novo ateísmo”, de Richard Dawkins e Sam Harris, é um dos sete tipos de ateísmo catalogados por John Gray: “O primeiro, chamado ‘novo ateísmo’, pouco contém de novo ou interessante. […] Não tenho o menor interesse em converter quem quer que seja a ou de qualquer tipo desses ateísmos, mas minhas preferências ficarão claras. Avesso às cinco primeiras variedades, sinto-me atraído pelas duas últimas, formas de ateísmo que se dispõem a conviver com um mundo sem deus ou um Deus inominável.” GRAY, John, Sete tipos de ateísmo, p. 13-14.
[20] Em Le mauvais démiurge, Cioran exalta nostalgicamente aquele “bendito tempo em que os solitários podiam explorar seus abismos sem parecerem obsessos, dementes. […] Mesmo que só tivesse aspectos odiosos, o monacato sempre valeria mais do que qualquer outro ideal. Mais do que nunca, deveriam construir monastérios… para os que creem em tudo e para os que não creem em nada. Para onde fugir? Não existe mais canto algum onde se possa execrar profissionalmente este mundo” (MD/Œ 1194). John Gray fornece o caso de George Santayana como exemplo de um ateu que escolheria terminar sua vida em um convento de freiras. Santayana viveu no convento da Pequena Companhia de Maria (ou das Monjas Azuis, por causa da cor de seus hábitos) de 1941 até sua morte, em setembro de 1952. GRAY, John, “George Santayana, um ateu que amava a religião”, Sete tipos de ateísmo, p. 145. Cioran viveu até o fim da vida em Paris, tendo feito, em seus primeiros anos na França, um retiro espiritual num convento dominicano, de cuja experiência resultaria uma extensa correspondência epistolar com o líder do convento, o padre Marie-Dominique Molinié, além de um texto no Breviário: “Divagações em um convento”.
[21] NIETZSCHE, A Gaia Ciência, §125, p. 147.
[22] JAUDEAU, Sylvie, Cioran ou le dernier homme, p. 13.
[23] Cioran encarna o melhor espírito do romantismo alemão (e do romantismo tout court) no sentido de que, à diferença das éticas que pretendem moldar os homens, “não nos conduz a nada que se possa imitar ou de que se possa extrair ‘inspiração’, e isso porque […] nos ‘conduz’ antes de tudo a nós mesmos.” LACOUE-LABARTHE, Philippe, NANCY, Jean-Luc, L’Absolu littéraire : théorie de la littérature du romantisme allemand, p. 10. Cioran não pretende ensinar, mas “despertar”, o que “é rejeitar tudo o que se aprendeu, é ser você mesmo…” (BD 61). “Desde Adão, todo o esforço dos homens tem sido por modificar o homem. As pretensões de reforma e de pedagogia, exercidas à custa dos dados irredutíveis, desnaturam o pensamento e falseiam seu devir. O conhecimento não tem inimigo mais encarniçado do que o instinto educador, otimista e virulento, ao qual os filósofos não saberiam escapar: como permaneceriam imunes os seus sistemas? À exceção dos céticos antigos e dos moralistas franceses, seria difícil citar um só espírito cujas teorias, secreta ou implicitamente, não tendam a moldar o homem. Mas este subsiste inalterado, embora tenha seguido o desfile de nobres preceitos, propostos à sua curiosidade, oferecidos ao seu ardor e ao seu deslumbramento” (BD 41-42).
[24] Ibid., p. 64.
[25] “O mal é uma doença; e preocupar-se com a doença é por si só uma forma adicional de doença que só agrava a afecção original.” JAMES, William, “The Sick Soul”, The Varieties of Religious Experience, p. 103. Cioran escreve em L’Arbre de vie, o texto que abre La Chute dans le temps: “Não é bom para o homem lembrar-se a cada instante de que é homem. Debruçar-se sobre si já é um mal; debruçar-se sobre a espécie, com o zelo de um obsesso, é ainda pior: é atribuir às misérias arbitrárias da introspecção um fundamento objetivo e uma justificação filosófica. Quanto mais se tritura o seu eu [son moi], mais se tem o recurso de pensar que se está cedendo a um capricho; quando todos os eus [tous les moi] se tornam o centro de uma interminável ruminação, encontram-se generalizados por um desvio os inconvenientes de sua condição, o seu próprio acidente erigido em norma, em caso universal” (CT/Œ 1071);
[26] “A melancolia é uma religiosidade que não precisa do Absoluto, um deslizamento para fora do mundo sem a atração do transcendente, uma tendência para as aparências do céu, mas insensível ao símbolo que este representa. Sua possibilidade de prescindir de Deus – embora cumpra as condições iniciais de aproximar-se Dele – a transforma numa volúpia que satisfaz seu próprio crescimento e suas fraquezas sucessivas” (AG 31).
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MENEZES, Rodrigo Inácio R. Sá, “Ne te quaesiveris extra: Bloom, Cioran e a autodependência”, Portal E. M. Cioran Brasil, 7 de fevereiro de 2022.
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