A ética do sacríficio – CIORAN

Rebentar com todo o ardor apaixonado de nossa alma, vencer toda a resistência e destruir todos os obstáculos que existem no caminho de nossa grande loucura. Estar orgulhosos de nossa absurda e infinita coragem e partir em meio a essa embriaguez de orgulho e de êxtase para os últimos cumes do ser, impulsionados pela sede das grandes conquistas e pelo desejo das realizações finais. Que nosso gesto seja uma criação, o signo de um mundo novo; que o entusiasmo seja uma missão e o pensamento, uma ordem. Que nossa loucura, intensa e profunda até o sublime, desencadeie um terror cósmico e uma ilimitada angústia cujo turbilhão atice as chamas de nossa vida, demasiado viva para não arder e demasiado dramática para não explodir. Que nada detenha nosso impulso de afirmação e que nossa vida deixe um rastro de morte para que nossa derradeira afirmação redima todos os sacrifícios. Que a suprema conquista e o absurdo impulso na direção do mundo dominem todos os nossos pensamentos e desejos, e que a sede de mundos infinitos aumente com nossa elevação. Amemos nossas grandes alegrias e nossos grandes desesperos, mas odiemos mortalmente a inércia, a dúvida e a passividade; odiemos também tudo o que faz diminuir o ardor apaixonado da alma, como também tudo o que impeça nosso absurdo impulso na direção do mundo. Que sejam positivos ou negativos, isso pouco importa! Basta que nossa alma vibre. Pois é impossível que de uma grande negação não nasça uma grande afirmação; nas grandes negações palpita o mesmo fogo que nas grandes afirmações. As grandes transições só podem acontecer nas alturas. Não resulta o êxtase das chamas que nos consomem nas terríveis, grandes e infinitas negações? Que a loucura seja a nossa única sabedoria. […]

O amor é tanto mais profundo quando se dirige a seres infelizes. Mas infelizes não porque careçam de condições favoráveis de existência, porque esses só despertam a nossa piedade, mas infelizes no âmago de seu ser. Por que deveríamos amar quem caminha com passo firme pela vida? Ele tem necessidade de nosso amor? Quanto mais homens existem contentes com sua condição na terra, tanto mais desce meu amor a um nível inferior. Me atrai a infelicidade dos outros como um exercício do meu amor. A doentia sede de infelicidade, a busca das tristezas alheias, desenvolve em mim um amor equivalente a suas tristezas, doenças e desgraças. E, quando meu amor reduz a intensidade dessas maldições, é como se lutasse contra minhas tristezas, minhas doenças e minhas desgraças; uma luta que, ao diminuí-las nos outros, as aumenta em mim, para que, variando sua intensidade, possa suportá-las melhor. Todas as tristezas, doenças e desgraças dos outros eu as absorvi em mim na medida em que as reduzi nos outros. Só posso defender-me delas aumentando-as. Há seres que nesta ordem de coisas têm uma infinita capacidade de resistência. E, então, é um crime não praticar o amor como meio de reduzir a infelicidade alheia. Só no amor pelos infelizes, pelos que não podem ser felizes, o sacrifício coroa o amor. Não existe profundidade no amor sem sacrifício porque, em geral, não existe profundidade sem uma grande renúncia. E que outra coisa é o sacrifício senão a grande renúncia a um grande amor? A vida parece ganhar sentido somente no sacrifício. Mas não é uma amarga ironia o fato de que no sacrifício percamos a vida?

O sacrifício é a suprema afirmação através de uma suprema renúncia. Sacrificar-se por algo significa descobrir um valor pelo qual se pode renunciar a tudo o que a vida oferece; mediante o sacrifício queremos salvar algo que só pode existir através da compensação da não existência. Minha redução a nada reclama para a existência outra forma de vida que se ergue sobre mim que me converti em nada. O sacrifício é uma tentativa de salvar a vida por meio da morte. A minha morte é a condição de sobrevivência ou de nascimento dos valores ou de um ser.

A aspiração ao nada somente se torna positiva no sacrifício, assim como a renúncia, que se converte em um ato de vida só no sacrifício.

Que nosso amor absorva tanta infelicidade, tristeza e doença das infelicidades, tristezas e doenças alheias de modo que nosso sacrifício e nossa ruína impliquem realmente o triunfo do amor. E, se dermos àqueles que só podem ser infelizes apenas a ilusão de uma infelicidade menor, não estaremos oferecendo a eles, no entanto, o reconhecimento de nosso amor por meio de nosso excesso de infelicidade?

Quisera ser somente raio de luz e dia, elevar-me em um ritmo sonoro até as alturas do esplendor, e que as profundidades da obscuridade não me levem sobre as asas de uma música tenebrosa. Não sei se é a luz que se eleva em mim ou se sou eu que se precipita na direção da luz; não sei se sou luz ou me torno luz. Mas em mim cintilam feixes de luz, flores de luz como aparições angélicas e choram fulgores de lágrimas. E não caem essas lágrimas de mim como estrelas de um céu abandonado, de um céu que derrete em chamas suas próprias alturas? Como se expande a luz em mim e se concentra em feixes! Quão sólida se torna a luz, como uma substância, tão carregada de fulgor, e como se espalha em mim, igual ao tempo, ao tempo que corre em mim! […]

Cada vez mais estou convencido de que o heroísmo tem suas raízes no desespero. Fracassamos na vida por desespero; mas ele não nos leva a fracassar na morte. O sacrifício, só o sacrifício, salva a nossa morte e só ele resgata uma vida. A partir do momento em que a vida não é pura, mas infernal e torturante, não é o sacrifício uma sublime aniquilação? Poder morrer pelos outros; pelos sofrimentos de milhares de seres anônimos, por uma ideia fecunda e absurda; consumir a vida pelo que não nos concerne, destruir-se generosa e inutilmente, não é a única forma de renúncia de que somos capazes? Cada gesto só ganha valor na medida em que parte de uma grande renúncia. Só a morte dá profundidade aos atos da vida. E, no sacrifício, a vida se realiza graças à morte.

Se todos os homens para quem a vida é um bem perdido aprendessem a desperdiçar menos a sua morte, o mundo chegaria a ser uma sinfonia de imolações. Então, graças à morte, a vida adquiriria um caráter de solene gravidade e de grande renúncia e sacrifício, tenderia a uma pureza a que aspiram tantos impulsos desesperados. Todo sacrifício é um protesto contra a falta de pureza da vida. Por isso só podemos continuar sendo criadores pelo sacrifício.

Passar da renúncia ao heroísmo! Mas não à indiferente passividade dos sábios. É impossível para nós a renúncia como um tranquilo e progressivo distanciamento das coisas, levado até a indiferença total. Não é nos momentos de grande renúncia, de grande distanciamento, que germina a ideia de nossa própria missão?

Não podemos falar de renúncia sem nos mortificarmos, sem nos atormentarmos e sem ficarmos tristes. A renúncia é para nós um fenômeno infinitamente dramático; extravasamos nela demasiada energia para que continue sendo renúncia. E nos interessa demasiado o processo psicológico da renúncia para que não acabe em tragédia. Não renunciamos; queremos renunciar. Por isso não podemos ser outra coisa senão heróis.

Quando Buda fala de renúncia, é como se nós falássemos do amor. Renunciar com a naturalidade de uma flor que se fecha ao entardecer: esse é o segredo de uma renúncia que não poderemos realizar nunca, porque colocamos demasiada paixão nas negações. Não se tornam positivas todas as negações durante nossos momentos de tensão? Ao destruir tudo é como se criássemos tudo. Como se estivéssemos em uma fogueira, estalamos de negações. E consumimos as negações não na dúvida, mas com a certeza de uma missão. Nós nos desfazemos de tudo para conquistar tudo; nos sacrificamos para transfigurar a vida; renunciamos para nos afirmar; no desprendimento último, nosso entusiasmo abraça o mundo. Daí que a liberação permaneça em nossa consciência como um simples problema. Porque a liberação só se torna realidade para aqueles que seguem uma única direção no absoluto.

Desprenda-te de tudo para tornar-te centro metafísico, teu único ganho, teu único destino. Que ao perder tudo, esse triunfo seja para ti motivo de regozijo e nos fracassos descubras raios de luz para tua auréola. Viva como um mito; esqueça a história; pensa que contigo não se tortura uma existência, mas a existência; que a matéria, o tempo e o destino se concentraram em uma única expressão; torna-te fonte de ser e de atualidade na existência. Ao viver como um mito, tudo o que é anônimo na natureza se torna em ti pessoal; e tudo o que é pessoal, anônimo. Viverás então tudo tão intensamente, que as coisas se tornarão essências e perderão seu nome. Então poderás renunciar à tentação do individual; poderás esquecer uma pessoa ou um objeto, então poderás dar tudo e poderás dar-te a ti por inteiro.

Pergunta moderna a um problema eterno: por acaso não nos atormentará o pesar de nossa renúncia?

Todo o problema da renúncia: como podemos fazer dela algo que não seja uma perda, como podemos fazer dela uma forma de amor. Queremos fazer da renúncia algo positivo. Covardia ou heroísmo moderno?

Quando a renúncia não se realiza no sacrifício, mas termina em desilusão e ceticismo, fracassou uma experiência capital. É como uma negação que não conduz ao êxtase. Só há uma forma pela qual a renúncia ainda pode chegar a ser fecunda: se está aberta para a vida. Uma vez rompidos os laços com o mundo, tenhamos bastante amor para poder, a partir de nosso distanciamento, abarcá-lo todo; situemo-nos infinitamente longe de tudo e infinitamente perto de tudo; englobemos tudo com uma visão de êxtase. Desta maneira a renúncia significará um ganho. Nela nossa alma se abrirá para tudo, porque perdeu tudo. Um amor total e infinito não é possível sem distanciamento. Só o amor que se realiza individualmente, o único amor imediato, prescinde desse distanciamento.

Só uma alma dilacerada de amor ainda pode reabilitar este mundo vulgar, mesquinho e repulsivo. Um grande amor não existe sem uma grande renúncia. Só podemos ter tudo quando não temos mais nada. As alegrias e as tristezas da renúncia! Nós nos realizaríamos de forma absoluta se a renúncia fosse apenas ocasião de alegria. Mas amamos demasiado nossa imperfeição e por isso nossos amores nos entristecem. Quando aprenderemos a ver no amor algo mais do que uma perda? […]

Se a negação não leva ao êxtase e o desespero à profecia, isso significa que não atingiram a profundidade na qual se superam a si mesmas. Se deles não surge a consciência de sua própria missão, as vias da existência permanecerão para nós fechadas para sempre. E não é um dever frente ao próprio destino submeter nossa consciência à nossa missão exemplar? Não estamos obrigados a explorar nossa febre, confusão e vibração para chegar à transfiguração a que nos leva a consciência da unicidade e da profundidade de nosso destino? Para uma alma grande, o que denominamos tristeza, desespero, renúncia, não têm valor por si mesmos, mas são apenas graus de sua própria transfiguração, etapas de uma ascensão grandiosa. Todos os graus da transfiguração e todos os momentos de ascensão são vias para a pureza, para um desprendimento sublime, porque desprendimento não é outra coisa senão suprema comunhão. Quando apagamos nossas manchas de obscuridade, não estamos buscando que a vida flua em nós de maneira doce e imaterial, tornar-nos pura fonte e ficarmos imaculados depois de tantas virgindades perdidas? Quem sabe se a aspiração à morte não vem do lamentar que a vida não seja eterna. Não descobriram a vida os que sofreram por sua causa e a negaram por medo de não poder amá-la?

Já que não podemos ser felizes, por que não fazer de nossa infelicidade algo criador, dinâmico e produtivo? Não estamos obrigados a atiçar nossa fogueira interior e a nos consumir nos abrasadores cumes da tristeza? Só serão fecundos os atos de nossa vida se tudo o que vivamos for feito de maneira ilimitada. Que nossa inclinação para nos consumir nas chamas de nossas próprias vivências não tenha limite, como também não o tenha o estremecimento que faz vibrar o nosso ser. Temos a obrigação de subir e descer até o infinito pela escada das formas da vida, cuja natureza há de importar-nos menos do que a magia da profundidade e da infinitude a que possamos chegar.

Para além da esfera habitual das experiências vitais existe uma zona na qual tem lugar uma espécie de sucessão de transfigurações. O sofrimento se converte em alegria, a alegria em sofrimento; o entusiasmo em desilusão, e a desilusão em entusiasmo; a tristeza em ardor, e o ardor em tristeza. A consistência dos estados anímicos desaparece nessa sucessão de transfigurações e se torna mais sutil pelos êxtases contínuos. Quando se vive tudo com uma profundidade vertiginosa, sob o signo do ilimitado, descobrimos um espaço que só é acessível para nós mesmos durante o êxtase de nossas próprias vivências. Aí a negatividade deixa de ser estéril, e o demoníaco destruidor, porque tudo, como se fosse uma sinfonia de chamas interiores, se desenvolve e se consome em um hino de vida e de morte.

Mas para chegar a esse lugar é preciso ter sofrido muito; e, para que os atos de nossa vida adquiram profundidade, é muito o que precisaríamos padecer. Nossos atos cotidianos são banais e insignificantes quando se realizam nas condições naturais da vida. O mero fato de viver, por si só, não significa nada. Viver pura e simplesmente é não conferir profundidade alguma aos atos da vida. Só quando se vive como se a vida fosse um bem que poderíamos sacrificar a qualquer momento, só então ela deixa de ser uma banalidade e uma evidência. É uma estupidez afirmar que a vida nos foi dada para vivê-la; ela nos foi dada para sacrificá-la, ou seja, para extrair dela mais do que suas condições naturais permitem. Não existe outra ética senão a do sacrifício.

CIORAN, Emil, O Livro das Ilusões. Trad. de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 2014.

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