Santidade & Ceticismo: Modelos de Antinatureza, Duas Impossibilidades

Ser mais inutilizável que um santo…

Silogismos da amargura

O cético, para o grande desespero do demônio, é o homem inutilizável por excelência.

La Chute dans le temps

Uma boa maneira de entender o que muda no modo de pensar de Cioran, na transição entre a juventude nacionalista e a maturidade exilada, entre seus livros romenos e franceses, é prestando atenção à mudança, ao longo do tempo, na sua visão em relação à santidade, por um lado, e ao ideal (pagão, não cristão) da sabedoria (sophía), por outro.
O santo não é um sábio e não tem a pretensão de sê-lo. A santidade, segundo Cioran, é um ideal e um fenômeno de tipo cristão, monástico ou eremítico, e portanto religioso (pautado pela fé e pela submissão a Deus, de onde o “suicídio do intelecto” perpetrado por aquele ou aquela que tem essa vocação, no fundo mística). A sabedoria, por sua vez, ideal helênico (grego) por excelência, seria uma meta eminentemente filosófica, pautada, portanto, pela busca “racional” da felicidade (eudaimonía). Apenas em um contexto, em um horizonte de pensamento e espiritualidade Cioran encontra esses dois ideais, e seus respectivos estilos de vida, unidos numa única existência e num único corpus de ensinamentos espirituais: no Oriente budista e/ou hindu. Assim, tanto faz, para ele, se o budismo é uma “religião” ou uma “sabedoria (prática) de vida”, sendo essa indiferenciação uma vantagem antes que uma desvantagem.

Em seus primeiros textos em língua romena, como Nos cumes do desespero, Lágrimas e santos (inédito em português) e O livro das ilusões, pode-se verificar da parte de Cioran certo desprezo, apaixonado, impenitente e lírico, em relação a toda e qualquer forma de sabedoria, à mínima pretensão ou aspiração ao autodomínio e à autodeterminação (autarkeia), à tranquilidade e ao repouso da alma (ataraxia), à indiferença e à neutralidade, ao equilíbrio vital (homeostase), à total ausência de paixões (sobretudo violentas) e de furor, muito sofrimento, conflito, desequilíbrio, turbulência, tempestuosidade. Cumpre notar que Cioran entende o Ceticismo (além do Epicurismo e do Estoicismo), para além de suas intricadas argumentações epistemológicas, em chave de uma sagesse de vie, como um dos mais notáveis meios desenvolvidos pela racionalidade grega para alcançar o fim supremo da vida feliz. A distância entre o ceticismo desvirtuado de Cioran e o ceticismo pirrônico original se mede pelo fato de que, para o filósofo romeno, a Dúvida é um suplício, um castigo, um fator de turbação do espírito, mais do que uma fonte de repouso e tranquilidade da alma, como se supõe ser o caso do ceticismo pirrônico, em suas consequências práticas (éticas) ulteriores.
“Nos cumes do desespero” , o jovem Cioran faz a apologia do desequilíbrio e da dilaceração, das altas intensidades e dos altos cumes, inclusive a apologia das ilusões, tudo isso na contramão de toda a sagesse, contra todo o ideal racional de autoperfeição, transparência, pureza, etc. Ao mesmo tempo, demonstra um ávido interesse pelas vidas dos santos e das santas (hagiografia), pelos relatos dos místicos e das místicas do cristianismo (mas não apenas), mas não por reconhecer neles um modelo de perfeição, senão um modelo de excesso e extremismo, exemplos de antinatureza, por assim dizer. O que o atrai a essas figuras tão pouco atuais, o que o fascina não é um suposto exemplo de bondade, caridade e compaixão, mas o aspecto temerário, frenético, absolutamente patológico (beirando o patético), da santidade. É o que há nela de anormal, aberrante, excepcional, do ponto de vista da mediania das criaturas, que o seduz. Comparada à doença comum de ser humano, ser santo seria então uma doença extraordinária, um prodígio da “natureza demente” . O santo encarna um ideal “monstruoso” do ponto de vista da natureza (contra natura), e assim a santidade aparece para o jovem Cioran (filho de sacerdote ortodoxo) como uma impossibilidade tentadora, uma oportunidade — fadada a ser perdida — de perder-se em Deus, ou, para antecipar uma perspectiva mais desabusada que se inaugura no Breviário, desejar a “anulação pela salvação”.
Algumas expressões, nos textos romenos de Cioran, dessa negação trágica (e um tanto romântica) da sabedoria, segundo a qual o sábio mata ou sufoca o élan vital em nós, tudo que nos liga ao mundo e à vida, mediante o desejo:

“O estado lírico está além das formas e dos sistemas: uma fluidez e um derramar-se interiores misturam-se numa só expansão, como todos os elementos da vida do espírito numa convergência ideal, para criar um ritmo intenso e perfeito. Comparado ao refinamento de uma cultura paralítica que, prisioneira das molduras e das formas, tudo disfarça, o lirismo é uma expressão bárbara: seu verdadeiro valor consiste, precisamente, em ser somente sangue, sinceridade e chamas.”

Nos cumes do desespero (1934)

A maior estupidez que o espírito humano já pôde conceber é a ideia da libertação por meio da supressão do desejo. Por que dificultar a vida, por que destruí-la em prol de um ganho tão estéril quanto a indiferença total, junto a uma liberação ilusória? Como ousaríamos falar ainda da vida quando a esvaziamos completamente em nós mesmos? Eu tenho mais estima pelo indivíduo de desejos contrariados, infeliz no amor e desesperado, do que pelo sábio impassível e orgulhoso. […]
Odeio a sabedoria desses homens não afetados pelas verdades, que não sofrem nos nervos, na carne e no sangue. Eu amo apenas as verdades vitais, as verdades orgânicas provenientes de nossa inquietude. Todos aqueles que pensam de maneira viva têm razão, pois jamais se encontrará um argumento decisivo contra eles. E mesmo que algum se apresentasse, eles não resistiriam à vida. Que algumas pessoas ainda teimem em buscar a verdade – eu, disto, somente me surpreendo. Não se compreendeu, então, que ela não existe?

Nos cumes do desespero (1934)

“Amemos nossas grandes alegrias e nossos grandes desesperos, mas odiemos mortalmente a inércia, a dúvida e a passividade; odiemos também tudo o que faz diminuir o ardor apaixonado da alma, como também tudo o que impeça nosso absurdo impulso na direção do mundo. Que sejam positivos ou negativos, isso pouco importa! Basta que nossa alma vibre. Pois é impossível que de uma grande negação não nasça uma grande afirmação; nas grandes negações palpita o mesmo fogo que nas grandes afirmações. As grandes transições só podem acontecer nas alturas. Não resulta o êxtase das chamas que nos consomem nas terríveis, grandes e infinitas negações? Que a loucura seja a nossa única sabedoria.”

O Livro das ilusões (1936)

Não é o mesmo que se verifica a partir do Breviário de decomposição em diante, livro que marca uma divisão crucial no conjunto da obra de Cioran, conforme se pretende intimamente vinculada à sua biografia, à sua experiência e itinerário de vida. A partir de então, doravante escritor de língua francesa, Cioran já não é mais aquele apologista da ilusão e das paixões, da barbárie e do caos interior, do extremismo, do inconsequencialismo e do sacrificialismo absurdo, consistindo em ir até o fim, às últimas consequências, mergulhando de cabeça no abismo ou em Deus.
Semelhanças à parte com os seus textos romenos (notadamente Nos cumes do desespero, pelo tom vociferante, lírico-dramático), o Précis de décomposition é o livro de estreia de um pensador balcânico, de um caráter explosivo e irascível que encontrou na língua francesa um “santo remédio”, por assim dizer, no sentido de curar-se de si mesmo, ou chegar o mais próximo possível de uma tal “cura”, um instrumento salutar de ressubjetivação e ascese literária: lucidez e escritura aforística ou ensaística, em todo caso, o estilo como aventura numa pátria linguística estrangeira, como um meteco exilado na língua francesa, encontrando nela uma camisa-de-força bastante oportuna para acalmar um pouco as tempestades da sua alma e outros cataclismas interiores.
Muito embora faça jus, sempre que convenha, à inextirpável naturalidade do ser humano, à sua “criaturalidade” imperfeita e insuficiente, à sua condição decaída e impura, à sua natureza adâmica, “humana, demasiado humana”, a inclinação parece ser totalmente outra a partir do Breviário, inversa àquela manifestada nos seus primeiros textos. Doravante, Cioran demonstra, talvez por um gradativo cansaço, pelo esgotamento de uma vitalidade fora de ordem, estar mais aberto ao ideal (ascético) da sagesse, simpatizar com a perspectiva do (de um relativo) autodomínio, de uma lucidez que é, no limite, incompatível com as paixões, de uma frieza sepulcral no trato com as palavras e as ideias mesmas.

Se, anteriormente, ele parecia enredado nas tramas voluptuosas da filosofia afirmativa de Nietzsche, com o seu Amor fati e esse imperativo de dizer Sim a tudo, muito embora nunca tenha chegado a fazê-lo sem contradizer-se, sem certa hesitação melancólica, escrevendo em francês Cioran pretende comunicar uma decisão e um movimento antitéticos. Aliás, vale lembrar que o título inicial do seu livro de estreia em língua francesa, descartado para ceder lugar ao Breviário de decomposição, era Exercices négatifs. Será então uma filosofia negativa, a negatividade como motor e substância do pensamento (“fel pensativo”), a negação como potência de destruição e criação em um mundo no qual “só a impureza é sinal de realidade”.
Eis uma expressão emblemática dessa renovada inclinação ascética — desiludida, resignada, contrariada — à negação (que não se confunde com a dúvida), preponderante sobre a afirmação, sobre a disposição voluntarista-vitalista — de viés nietzschieano — a dizer Sim ao que quer que seja:

Há uma vulgaridade que nos faz admitir qualquer coisa deste mundo, mas que não é bastante poderosa para nos fazer admitir o mundo mesmo. Assim, podemos suportar os males da vida repudiando a Vida, deixar-nos arrastar pelas efusões do desejo rejeitando o Desejo. No assentimento à existência existe uma espécie de baixeza, a qual escapamos graças a nossos orgulhos e a nossos pesares, mas sobretudo graças à melancolia que nos preserva de um deslize para uma afirmação final, arrancada de nossa covardia. Há coisa mais vil do que dizer sim ao mundo? E, no entanto, multiplicamos sem cessar esse consentimento, essa trivial repetição, esse juramento de fidelidade à vida, negado somente por tudo o que em nós recusa a vulgaridade.
Podemos viver como os outros vivem e no entanto esconder um não maior que o mundo: é o infinito da melancolia…

“Dualidade”, Breviário de decomposição

A julgar pelos livros posteriores, mais tardios, o Breviário é ainda bastante ambíguo no que concerne à dialética Afirmação-Negação, numa relação de antítese e complementariedade que poderia ser representada, esquematicamente, por Nietzsche e Schopenhauer, respectivamente (duas das mais importantes influências filosóficas de Cioran). É como se, igualmente incapaz de um Não e de um Sim definitivo e absoluto, Cioran buscasse comunicar a hesitação, o titubeio, o hamletismo entre uma e outra inclinação, sem poder decidir-se por nenhuma delas, a meio-caminho e à deriva entre as glândulas e o absoluto:

Cada desejo humilha a soma de nossas verdades e obriga-nos a reconsiderar nossas negações. Sofremos uma derrota na prática; no entanto, nossos princípios permanecem inalteráveis… Esperávamos não ser mais filhos deste mundo e eis-nos aqui submetidos aos apetites como ascetas equívocos, donos do tempo e escravos das glândulas. Mas este jogo não tem limites: cada um de nossos desejos recria o mundo e cada um de nossos pensamentos o aniquila…

“Cosmogonia do desejo”, Breviário de decomposição

Ao mesmo tempo, já despontam neste livro algumas propriedades inéditas, perfeitamente ausentes dos textos romenos, e que confirmam essa paulatina inclinação ascética à sabedoria, em detrimento da “vitalidade”. Por exemplo, o elogio da frivolité como um passaporte ou certificado de civilidade, e também a exaltação – desabusada, irrestrita – do ceticismo, tal como no seguinte texto:

Não se pode querer a fé; como uma doença, ela se insinua em nós ou nos fere; ninguém pode comandá-la e é absurdo desejá-la se não se está predestinado. Se é crente ou não se é, como se é louco ou normal. Eu não posso crer nem desejar crer: a fé é uma forma de delírio ao qual não sou propenso… A posição do descrente é tão impenetrável quanto a do crente. Entrego-me ao prazer de estar desenganado; acima da Dúvida só coloco a satisfação que proporciona…”

“Divagações em um convento”, Breviário de decomposição

É como se, frustrado e desiludido em sua vontade de crer (e não é uma coincidência que A vontade de crer seja o título de um dos seus textos acadêmicos de juventude), Cioran se resignasse agora à condição do descrente, e, para não permanecer passiva e negativamente nesta posição indesejável, prescrevesse a si mesmo, como uma possível, a Dúvida cética, o Ceticismo (o que só faz trair a natureza heterodoxa e atípica do seu ceticismo). Anuncia-se aqui, neste texto, uma problemática que será mais elaborada, em forma ensaística, em La chute dans le temps (1964), no texto intitulado “É cético o demônio?” Ele argumenta, neste texto, que nem o demônio é verdadeiramente cético (no máximo, utiliza a dúvida para alcançar os seus fins), nem o cético serve à causa do demônio, sendo este, o cético, retratado como uma espécie de desocupado metafísico, um ser inútil e inutilizável com quem não se pode contar para nenhuma causa, nem a do Bem, nem a do Mal.

Se o Breviário é um livro ambivalente, marcado pela dualidade dilacerada e pelo hamletismo entre a afirmação e a negação, entre a necessidade de ilusão e a exigência da lucidez, seus livros posteriores, de cunho ensaístico, muitos dos quais inéditos em português, como La chute dans le temps e Le mauvais démiurge, descrevem uma crescente preocupação com o tema não da salvação (salut), na concepção teológica cristã, mas com a libertação (délivrance), em chave secular, na imanência do mundo e do devir. Ao mesmo tempo, aparecem longas reflexões sobre a ascese budista (cf. Le mauvais démiurge), entre outras referências que reforçam a suposição de um progressivo esgotamento propício a ideais ascéticos, na contramão de Nietzsche.

Se a produção romena de Cioran atesta uma obsessão e uma confrontação com os santos, de onde a desilusão do descrente em descobrir-se inapto à fé e à santidade, escrevendo em francês, por sua vez, a partir do Précis, a sua atenção parece voltar-se aos sábios e às figuras de sagesse ao longo da história, não apenas os filósofos gregos da Antiguidade tardia (helenística), mas também figuras orientais, como o Buda. Aqui também frustracão e desilusão, a consciência da inaptidão a qualquer forma de sabedoria, inclusive o Ceticismo. Talvez tenha sido esta a única sabedoria possível ao seu alcance, e nem isso… A ambivalência ou o hamletismo entre negação e afirmação, que perpassa toda a sua obra, romena e francesa, é um índice da medida em que Cioran não é total e definitivamente um cético, como gostaria de ser (ou como teria desejado outrora de ser santo). Não por uma deficiência exclusivamente sua, mas antes pelo fato de que o ceticismo lhe parece, como a santidade, um estado ideal e por isso mesmo improvável, contra natura. O homem não foi feito para ser santo na mesma medida em que não foi feito para duvidar e querer permanecer duvidando, suspender o juízo, indefinidamente, viver perpetuamente em estado de Dúvida. A diferença qualitativamente absoluta do santo é tão improvável quanto a indiferença do cético. O Cético nunca será o modelo da humanidade, nem o santo.

Cioran costuma referir-se à experiência vivida, à vivência formadora, no sentido disso que a filosofia alemã designa por Erlebnis, como uma série de grandes decepções que, em seu conjunto, tornariam experiente determinado indivíduo, ao longo de sua vida e existência. Como todos os demais, este não deixa de ser um juízo permeado de subjetividade, da personalidade e do temperamento do próprio Cioran. Quanto a ele, a propósito de decepções, talvez a sua maior tenha sido a de descobrir-se inapto para ser cristão, ou cético, ou gnóstico, um Nietzsche ou um Schopenhauer romenos, Pirro, Buda ou Deus, enfim, para ser (e dedicar-se a) qualquer outra coisa que não o próprio Cioran…

SÁ MENEZES, R. I. R., “Santidade e ceticismo: modelos de antinatureza, duas impossibilidades segundo Cioran”, Portal E.M. Cioran Brasil, 07/05/2021.

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